O primeiro e-mail com pedido de entrevista para este texto foi enviado às 9h15 da manhã da segunda-feira 15 de março. Antes das 10h, chegou mensagem de uma assessoria sugerindo um especialista em vazamento de dados. Naquela tarde, ainda entrou na caixa postal uma newsletter sobre criptomanias. As mensagens se sucederam até o dia em que esta coluna começou a ser escrita, na sexta-feira 19. Chegou de tudo. Das últimas sobre evolução de pagamentos digitais à oferta de conteúdo compartilhado sob medidas para públicos específicos, passando por consultores de produtos algorítmicos para consumo digital e especialistas em potencializar vendas no Instagram. A leitura de “A Era do Capitalismo de Vigilância - A Luta por Um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder”, de Shoshana Zuboff (Intrínseca, 2021), mal chegara ao fim e já se desdobrava em aulas práticas, na tela do computador. A cada mensagem, ressoava a autora: “Esqueça o clichê que afirma que, se é de graça, ‘o produto é você’. Você não é o produto; você é a carcaça abandonada”. O produto são os dados fornecidos no uso do e-mail, das ferramentas de busca e das redes sociais, que Shoshana chama de “superávit comportamental” extraído de sua vida. E você? A julgar pela autora, não passa de um ser que paga para ser dominado, escreve Maria Cristina Fernandes em sua coluna no Valor, publicada na sexta, 26/3. Vale a leitura, continua a seguir.
A percepção de que mensagens, buscas no Google, compras, além de postagens e curtidas em redes sociais são vigiadas de perto e geram um banco de dados comportamentais capazes de influenciar o consumo não é nova. O livro avança em mostrar como, face às reações públicas, a indústria da vigilância tem sido capaz de contornar as limitações para continuar a bisbilhotar a vida alheia e fazer (muito) dinheiro com isso. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Google Street View, que usava carros de anônimos, de taxistas ou motoristas de aplicativos para capturar imagens das ruas, casas e prédios. Lançado em 2007, o serviço foi banido em um grande número de países depois da reação de pessoas que se reconheceram nas imagens. A empresa desculpou-se, borrou o rosto das pessoas, mas valeu-se do banco de imagens reunidas como plataforma para muitos outros produtos que se valem do georreferenciamento.
A pressão das comunidades obrigou os governos a se mexer para adotar restrições e penalidades, mas não impediu que, em 2016, um advogado de Nova Jersey fosse tirado da banheira de sua casa para atender a campainha e se deparasse com uma aglomeração de adolescentes que, por dias a fio, acamparam no gramado em frente à sua casa e insistiram na existência de um Pokémon em seu quintal que precisava ser resgatado. O jogo “Pokémon Go”, que atraía anunciantes levando seus usuários a procurar os bonequinhos amarelos em pontos de venda, havia sido lançado a partir da base de dados do Google Street View.
No mesmo ano, um casal de aposentados, no estado americano de Illinois, precisou escolher pagar o financiamento de seu carro usado ou comprar remédios. O funcionário da empresa de cobrança que os visitou sensibilizou-se e deu início a uma campanha on-line para arrecadar fundos, o que não teria sido possível se a empresa empregasse os produtos de telemática criados a partir da sugestão de um consultor do Google que simplesmente teriam desligado o carro do casal inadimplente. Pelo mesmo fluxo de algoritmos por onde trafega a telemática de vigilância flui também a reação solidária capaz de recompor a confiança entre as pessoas.
No Brasil, a reação começou com o Marco Civil da Internet, em 2014, que, quatro anos depois, desdobrou-se na Lei Geral de Proteção de Dados. A legislação é mais próxima das restrições impostas pela União Europeia do que das frouxas condutas americanas na matéria. Determina que as empresas só podem coletar os dados estritamente necessários para realizar seu serviço. É baseada no princípio de que, para ir além, precisa do seu consentimento, explica Flávia Lefèvre, advogada especialista em direito digital, integrante do Comitê Gestor da Internet até o ano passado e hoje agregada à Coalizão Direitos na Rede. O consentimento vai desde o aplicativo de ioga que pede sua localização para vender o dado, até os contratos em letrinhas miúdas que ninguém lê e em cujo “aceito” todo mundo acaba clicando para conseguir ir adiante.
Por mais que se coloquem limites, estes sempre serão desafiados pela velocidade com a qual a tecnologia avança. Não há como uma boa legislação ser efetiva, diz Gisele Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora de arte digital, sem amparo além das fronteiras nacionais. Se um único país aperta o cerco, explica, o serviço vai ser hospedado em outro lugar onde o controle seja mais frouxo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a pornografia. A legislação existente tampouco impediu o roubo de 223 milhões de CPFs, em janeiro deste ano, o maior da história. A Lei Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em setembro de 2020, restringe a coleta de novos dados pelas empresas, mas a base anteriormente existente dificilmente sairá da internet.
Se a legislação fosse efetiva, talvez o presidente Jair Bolsonaro, que se valeu do impulsionamento de conteúdos falsos, sem limite, nas redes sociais, não tivesse sido eleito. Não estranha, portanto, que a proteção de dados tenha sido negligenciada em seu governo. Seu antecessor preparou o terreno que o bolsonarismo salgou. O ex-presidente Michel Temer vetou a criação de uma agência reguladora independente e colocou Autoridade Nacional de Proteção de Dados no organograma da Presidência da República, na mesma estrutura onde está a Agência Brasileira de Inteligência e o Gabinete de Segurança Institucional. “Foi como colocar a raposa no galinheiro”, diz Flávia Lefèvre, uma vez que o poder público é o maior coletor de dados pessoais e sensíveis.
E, como não poderia deixar de ser, o órgão foi loteado entre militares. O presidente, Waldemar Ortunho Jr., é coronel reformado do Exército. Dois dos quatro diretores também são egressos da caserna: o tenente-coronel Arthur Pereira Sabbat e o engenheiro militar Joacil Basílio Rael. Até agora sua atuação tem se limitado a solicitar informações à Polícia Federal, como no caso do vazamento de dados, e a soltar instruções normativas. Os conflitos continuam a ser dirimidos na Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor e no Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados também parece alijada da elaboração do edital do leilão da tecnologia 5G. Hoje entregue ao Ministério das Comunicações, o edital deve sair ainda neste semestre. Por mais dúvidas que ainda suscite, parece estar descartada a exclusão da Huawei como fornecedora. Menos pelas convicções que inspiram este governo do que por pressões empresariais contrárias a uma elevação de custos decorrente de um fornecimento da infraestrutura do 5G que exclua a China.
O governo brasileiro afirma ser capaz de manter sob seu controle a rede para tráfego de informações sensíveis, mas um especialista na área diz que o país não tem meios para construir esta rede. O máximo que se fez no tema foi desenvolvido no centro de pesquisa em criptografia, da Abin. Boa tecnologia, mas facilmente decodificável por qualquer um e não apenas pelos chineses. Desde que Edward Snowden revelou os métodos da agência americana NSA, na verdade, ficou difícil acreditar que é o uso da tecnologia chinesa que vulnerabiliza as redes de comunicação.
No livro, Shoshana Zuboff se limita a dizer que, se no Ocidente o Estado trabalha com e por intermédio dos capitalistas de vigilância para construir suas redes de informação, na China a competição pelo controle opõe Estado e capitalistas de vigilância. Se com a posse de Joe Biden já houve sinalização de uma regulamentação mais agressiva em relação a Amazon, Google, Facebook e Apple, também é verdade que a mudança de postura não vai alterar a desvantagem do país em relação ao avanço chinês.
Os americanos acreditaram que o 5G era apenas um “pipeline” mais rápido. O resultado é que hoje os chineses têm suas próprias empresas na concorrência com as “big techs”, enquanto aos EUA não têm uma única fabricante de equipamentos 5G, que são todos, parcial ou inteiramente, produzidos na China e se revelaram muito mais do que “canos” para dados.
O Brasil não se contenta em observar a disputa desaparelhado para nela se posicionar, como abre as portas para o que Sergio Amadeu chama de “neocolonialismo digital”. Professor da UFABC e ex-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, Amadeu cita estudos segundo os quais 70% das universidades públicas, entre as quais a mais rica delas, a USP, e secretarias estaduais de educação no Brasil hospedam parte considerável de seus dados em grandes plataformas como Google, Microsoft e Amazon.
Não apenas a produção de conhecimento está hospedada nos Estados Unidos como o maior banco de dados sobre os jovens brasileiros também. Em 2019, enquanto a nação estava estigmatizada pelo diversionismo do então titular do Ministério da Educação, Abraham Weintraub entregava para a Microsoft toda a operação do Sisu, o sistema de seleção unificada para as universidades brasileiras, com notas e dados sócio-econômicos e de desempenho escolar de 1,7 milhão de estudantes. A justificativa foi a de que a empresa oferecia capacidade e bom preço para suportar o acesso de 7 mil inscritos.
A renúncia à autonomia se estende, na verdade, a toda a gestão de políticas públicas no país. Em maio do ano passado, conta Amadeu, o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações assinou com a americana Cisco acordo para o desenvolvimento de plataforma digital com este fim. Difícil concorrer com a Cisco, especialmente quando a Pasta, em vez de investir no desenvolvimento de plataformas digitais em parcerias com cientistas de dados brasileiros, preferiu destinar R$ 6 milhões para a pesquisa de vermífugos no tratamento preventivo e inútil da covid-19.
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Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
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