O devastador impacto da pandemia de covid-19 sobre a indústria de cinema tem como rara consequência positiva haver emprestado novo impulso ao processo de “aggiornamento” da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e de seu prêmio máximo anual, o Oscar. A lista de indicados para a disputa da 93ª edição do Oscar demarca uma aceleração no movimento visando tornar o prêmio mais independente e internacional, assim como mais diverso em gênero e etnias. A reforma provocada no fim da última década pelas campanhas #OscarsSoWhite e #MeToo, aplaudida nesta coluna pelo menos nas últimas três edições, ganhou tração neste ano, mas a lista de concorrentes não representa um novo movimento ou uma surpreendente ruptura, escreve Amir Labaki no Valor, em texto publicado dia 26/3. Continua abaixo.
Duas mulheres entre os indicados a melhor direção, 9 dos 20
intérpretes concorrentes representando etnias antes marginalizadas e maior
presença de produções independentes na disputa de melhor filme reafirmam a
busca recente de um saudável reequilíbrio.
Além de uma injustiça e um exagero, a liderança de
indicações por “Mank”, de David Fincher, que concorre a dez estatuetas, lembra
a velha máxima de que o Oscar é uma autocelebração de Hollywood.
Velhos hábitos não morrem facilmente, logo a superprodução
que reglamouriza os anos dourados do sistema de estúdios, ainda que à custa de
caricaturar e vilipendiar um dos maiores cineastas da história, Orson Welles
(1915-1985), teve na manhã das indicações seu fugaz momento de glória.
Tudo indica que a posição destacada não se repetirá na noite
de entrega do Oscar, em 25 de abril próximo, numa cerimônia ainda em
desenvolvimento, de olho nas restrições impostas pela pandemia.
É especialmente simbólico que um dos calcanhares de Aquiles
de “Mank”, o roteiro póstumo de Jack Fincher (1930-2003), pai do diretor, tenha
ficado de fora da enxurrada de indicações. Favorito sem melhor roteiro? Duvide.
Dos seis títulos do segundo pelotão, com seis indicações
cada um, “Nomadland”, da chinesa de nascimento Chloé Zhao, destaca-se como a
mais segura aposta do ano.
É um drama sobre os humilhados e ofendidos pela mais recente
crise econômica dos EUA, protagonizados por uma nômade contemporânea
interpretada por Frances McDormand (“Fargo”), forte candidata a melhor atriz.
Sua estreia no Brasil está agendada para a semana anterior à premiação.
Se Chloé promete fazer história como apenas a segunda mulher
a vencer o prêmio de melhor direção (Kathryn Bigelow a antecedeu em 2010 por
“Guerra ao Terror”), o mesmo deve acontecer com Chadwick Boseman (1976-2020), o
astro de “Pantera Negra” (2018), que rouba a cena em seu último papel como o
músico irascível do modorrento “A Voz Suprema do Blues”.
O único Oscar de melhor ator atribuído postumamente data de
1977, celebrando o imenso desempenho de Peter Finch (1916-1977) no atualíssimo
“Rede de Intrigas”, de Sidney Lumet (1924-2011).
Depois de uma excepcional lista de 15 semifinalistas, a
disputa de melhor documentário de longa-metragem infelizmente deu um trupicada.
De um lado, repete dois dos avanços ousados no ano passado. Um dos filmes da
lista também concorre a melhor longa internacional, como fizera “Honeyland” - o
romeno “Collective”, de Alexander Nanau, vencedor da disputa internacional do É
Tudo Verdade 2020.
Pela segunda vez consecutiva um documentário dirigido por
uma diretora sul-americana conquista uma vaga, com o chileno “Agente Secreto”,
de Maite Alberdi, menção honrosa de nosso festival no ano passado, sucedendo a
brasileira Petra Costa, de “Democracia em Vertigem”.
Nada a reclamar quanto às indicações de “Time”, de Garrett
Bradley, e de “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”, de James Lebrecht e Nicole
Newnham, seguindo esse último os passos de “Indústria Americana”, de Julia
Reichert e Steven Bognar, o vencedor do ano passado, que também estampava o
selo do novo braço documental do casal Barack e Michelle Obama.
A decepção do quinteto é “Professor Polvo”, de Pippa Ehrlich
e James Reed, um pouco inspirado documentário de natureza sobre a relação entre
um cineasta e um polvo nas águas da África do Sul.
O conjunto seria muito mais potente se, para essa quinta
vaga, contasse com “As Mortes de Dick Johnson”, um perturbador jogo macabro
entre a cineasta Kirsten Johnson e seu pai; “Welcome to Chechnya”, sobre a
repressão à comunidade LGBTQ na Chechênia; ou “76 Dias”, uma devastadora
radiografia do auge da epidemia de covid-19 em Wuhan, China. Como ficou, a
lista documental brilha menos do que poderia. A torcer para que ao menos a
premiação faça a coisa certa.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival
Internacional de Documentários
E-mail: labaki@etuverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br
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