Pular para o conteúdo principal

Estudos para um pedido de impeachment

Eu queria ir pra rua e queria que você fosse comigo. Estou cansada de bater panela e assinar manifesto. Não sou banqueiro nem economista famoso para que minha assinatura (ou a retirada dela) cause qualquer mudança ou comoção. Tem alguém na minha rua matando toda a vizinhança, e eu estou amarrada e amordaçada dentro de casa. E quando chegarem ao meu quintal e começarem a matar a minha família? Eu não estou fazendo nada nem você. Não, desculpa, falar mal do governo na sua bolha de WhatsApp, na sua bolha que lê a sua coluna no jornal, na sua bolha que te segue no Twitter não está adiantando, escreve Tati Bernardi em mais uma coluna matadora na Folha de S. Paulo, publicada sexta, dia 26/3. Vale a leitura, continua a seguir.


Minha filha ontem me contou um sonho. Ela chegava na escola e encontrava todas as crianças doentes. Daí ela chorava, mas ninguém a levava para casa. Ela tem três anos, vive cercada de tanto privilégio que eu até me preocupo, penso se já não passou da hora de lhe apresentar, pouco a pouco, alguma realidade. Ainda assim, mesmo sem saber o que são Covid e necropolítica, mesmo acreditando que vive longas férias com brinquedos em um jardim florido, ainda assim ela anda preocupada, irritada, tendo pesadelos. Estamos sendo exterminados, e o descalabro é tamanho que consegue passar por debaixo de uma porta lilás com adesivo de fada perto da maçaneta.

Reposto em minhas redes sociais uma matéria sobre a importância de usar máscara ou sobre o absurdo e o crime que é um governante vir a público falar, mais uma vez, sobre tratamento precoce. Tenho lá meus milhares de likes. Eu, da minha bolha, falo com você, da sua bolha. Amigos contra o horror. E daí? E do que isso adianta? Precisamos ir para as ruas. Eu e você e todo mundo.

Eu queria furar essa bolha assim como precocemente perfuraram a proteção idílica (e ilusória, eu sei) que eu fiz para a infância da minha filha.

Estou há dias aqui pensando como isso seria possível. Luiza Trajano estamparia nossa cara em milhões de eletrodomésticos e faríamos uma passeata de geladeiras, micro-ondas, fogões, batedeiras e liquidificadores?

Vamos para Israel fazer nossa manifestação? Vamos todos vestidos de plantonistas de UTI da linha de frente contra a Covid? A Nasa distribuiria roupas de astronauta para milhões de brasileiros? Algum ricaço do ramo do mel conseguiria milhões de roupas de apicultor pra gente?

Os fabricantes da N95 dariam máscaras para os 50% da população que rejeitam esse governo genocida? E combinar que no dia tal, na hora tal, vamos todos pra rua, com medidas de segurança, com distanciamento, com polícia e Exército do nosso lado, porque, sim, eles também devem estar muito cansados, porque, sim, tem muita gente boa na polícia e no Exército.

Passei por todas essas ideias até imaginar um aplicativo. Trata-se do app_echment.

O cidadão com caráter entra lá e manda uma foto de corpo inteiro, e então, mediante efeitos especiais, o Jornal Nacional mostra a Paulista lotadíssima. Eu e você e todo mundo. E assim a gente gritaria e exigiria o fim desse assassinato em massa.

Parece piada, mas é desespero. A gente precisa fazer alguma coisa que não seja panelaço e abaixo-assinado. Hoje o Brasil tem duas urgências: que a gente fique em casa contra o Covid e que a gente vá pra rua contra o Bolsonaro.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...