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Um vírus chamado Brasil

Assim que uma célula é infectada no corpo humano, o vírus começa a se multiplicar criando novos agentes infecciosos. Ocasionalmente, essa multiplicação gera pequenos erros nas cópias genéticas, as mutações. Os cientistas rastreiam as mutações à medida que são transmitidas através de uma linhagem, que é um ramo da árvore genealógica viral. Com o novo coronavírus, não é diferente. As mutações acontecem o tempo todo, e a grande maioria não faz muita diferença. O sars-CoV-2 já tem 800 linhagens diferentes desde que foi mapeado pela primeira vez, em janeiro de 2020. Se uma dessas centenas de mutações se acumula em uma linhagem, os vírus podem desenvolver diferenças nítidas em como funcionam. Essas linhagens passaram a ser conhecidas como variantes. E, isso, pode se tornar perigoso.

O vírus está sempre procurando oportunidades para as mutações que cria. Para isso, ele precisa de ambiente propício para a transmissão e abundância de receptores. Isso pode ocorrer em um ambiente fechado lotado, como uma igreja, uma casa de show ou até um estádio de futebol. No Brasil, uma cidade no coração da Floresta Amazônica se tornou celeiro propício para uma mutação do novo coronavírus que tem colapsado o sistema de saúde do país e colocou o mundo em alerta com o Brasil. Nos últimos meses, em terras brasileiras, o sars-CoV-2 acumulou 17 mutações até se tornar a P.1, escreve Constança Tatsch na edição desta semana da revista Época. Continua a seguir. 


“A ocorrência de uma mutação é um acaso. É como saber quando vai cair um avião. Só sabemos que, quanto mais estiverem voando, mais chances têm de cair. São sucessivos acontecimentos que fazem com que a mutação ocorra, mas, uma vez acontecendo, a força da seleção faz com que cresça e transmita mais”, afirmou a imunologista e pesquisadora Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).

Negacionismo, falta de medidas sanitárias eficientes e a falta de isolamento social criam um cenário favorável para que as mutações aconteçam. “Quanto mais hospedeiros, mais chances de haver uma vantagem positiva para o vírus. Essa diversidade vai sendo feita ao acaso, as mutações passam despercebidas, até que, em algum momento, surge um genoma com vantagens competitivas. Não é à toa que isso aconteceu no Brasil, na África do Sul e no Reino Unido, e agora também foram notificadas em países como os Estados Unidos. Todos com altos índices de infecção”, explicou o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Coronaômica, que sequencia e analisa o genoma do coronavírus em todo o país. Pare ele, o Brasil deu muito espaço para o vírus se expandir.

A cepa amazônica do novo coronavírus foi identificada no final de 2020, em Manaus, e pode ter colaborado para o segundo colapso do sistema de saúde do Amazonas, ocorrido entre dezembro e janeiro. Especialistas acreditam que ela pode estar associada ao aumento de casos, mortes e internações que levaram o país a alcançar o pior momento da pandemia até agora. Na quarta-feira 10, 2.394 pessoas morreram em 24 horas. O Brasil, hoje, é o país onde mais se morre em decorrência da Covid-19. Treze estados brasileiros e o Distrito Federal estão em situação crítica, com taxa de ocupação das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) superior a 80%. Pelo menos 4.352 pessoas aguardavam por um leito de atendimento em hospitais do país — 2.257 delas estavam na fila da UTI.

Pesquisadores de instituições brasileiras apontam que a variante surgida em Manaus tem um poder de transmissão até uma vez e meia maior do que as demais cepas em circulação no país. A P.1. também tem até 60% de chances de escapar da imunidade adquirida por quem foi infectado anteriormente por outras variantes. Isso explica por que casos de reinfecção foram possíveis em Manaus, que já havia sofrido duramente com o vírus durante a primeira onda, em abril do ano passado. Para Spilki, “se tivéssemos mais cuidado, não veríamos a variante ter esse sucesso todo”.

Os primeiros estudos mostram que a trajetória epidemiológica do vírus no Amazonas coincide com a adoção e posterior flexibilização das medidas de distanciamento social. Em abril de 2020, quando as taxas de isolamento superaram os 50%, houve uma queda na circulação do coronavírus. Depois, até setembro, o nível de contágio ficou estável em patamar endêmico, com transmissão comunitária na região. Após setembro, o governo estadual relaxou as medidas restritivas, e a bomba epidemiológica explodiu. “O Brasil pode virar um celeiro de variantes, isso é um problema e pode ser continuado. Mas é reversível se tomarmos as medidas corretas, com distanciamento social mais restrito e intensificação da vacinação. Temos o que fazer. Também não somos os únicos. Há mais de 50 variantes sendo investigadas no mundo, três preocupantes”, afirmou o virologista Fernando Spilki.

As políticas adotadas pelo presidente Jair Bolsonaro estão no cerne da tempestade perfeita pela qual o Brasil passa. A ausência de uma política nacional de controle da disseminação do vírus, a aposta em tratamentos sem eficácia comprovada e a errática política de compra de vacinas transformou o país num terreno fértil para a mutação do novo coronavírus. Se um dia os bolsonaristas afirmavam que o país enfrentava o vírus chinês, agora jornais internacionais falam com frequência da “variante brasileira”.

Na semana passada, o Reino Unido concluiu uma busca nacional de uma semana por uma pessoa infectada pela P.1. que havia ingressado no país. O governo britânico havia anunciado que seis pessoas infectadas tinham passado por exames no país, mas uma delas não tinha preenchido o formulário de identificação. Uma busca foi iniciada, mobilizando o serviço público e autoridades sanitárias. A preocupação é tamanha que o jornal britânico The Guardian trata o Brasil como uma “ameaça sanitária global”, em reportagem em que ouve médicos e especialistas preocupados com o avanço da doença no país. E com o risco de que novas mutações possam ser imunes às vacinas.

Por enquanto, parecem não ser. O Instituto Butantan anunciou que a vacina CoronaVac é eficaz contra a variante P.1., após estudo feito no Brasil com o Instituto de Ciências Biomédicas da USP. O diretor Dimas Covas já havia dito nas últimas semanas que o imunizante tinha se mostrado eficaz contra as linhagens do Reino Unido e da África do Sul em testes conduzidos na China. Embora não impeça a transmissão, a notícia é boa porque salva vidas: “Esse é todo o objetivo da vacina. A CoronaVac nunca prometeu bloquear a transmissão, o objetivo sempre foi impedir casos severos e mortes”, disse Ester Sabino. Na semana passada, dados preliminares de um estudo feito pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca também indicaram uma resposta adequada, mas a informação não foi confirmada oficialmente.

Para Fabio de Sá e Silva, codiretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, a alta no número de casos e o surgimento de uma variante brasileira podem afetar a imagem do país no exterior. “Este cenário compromete os esforços globais para controlar a pandemia, que em alguns casos envolveram alto custo político para as lideranças. Tudo isso pode ir por água abaixo quando um país populoso como o Brasil segue sendo um vetor de contaminação e mutação do vírus. Já na primeira onda, as falhas do governo Bolsonaro na condução da pandemia trouxeram consequências reputacionais ao Brasil; vários países fecharam suas fronteiras a brasileiros e muitos estudantes ou profissionais foram prejudicados. As implicações agora serão ainda piores”, afirmou Sá e Silva.

A escassez de vacinas torna-se um agravante para a situação brasileira, já que, além do distanciamento social, elas são a única forma de controlar não só a P.1., mas o surgimento de outras variantes. Cientistas defendem que haja apoio internacional para acelerar nosso processo de vacinação. “Já estamos discutindo uma vigilância genômica global, com auxílio financeiro de outros países, para avançar no sequenciamento. Quem sabe não seria o momento de uma visão mais estratégica global para apoiar países ou regiões onde surgem as novas variantes, dando apoio maior? Mas é uma visão minha, como pesquisador”, explicou o virologista Fernando Spilki.

Na quarta-feira 10, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, reduziu a previsão de doses de vacina contra a Covid-19 a serem distribuídas a estados e municípios no mês de março. Foi a quinta redução apontada a partir de cronogramas da pasta ou de declarações do ministro somente neste mês — a primeira delas, no dia 2. Segundo Pazuello, a previsão atual é ter entre 22 milhões e 25 milhões de doses neste mês. Praticamente a metade daquelas anunciadas em 17 de fevereiro (46 milhões) e 22 de fevereiro (48,9 milhões). No mesmo dia, o presidente sancionou um projeto de lei que possibilita a compra, pelo governo federal, das vacinas da Pfizer e da Janssen. A primeira, depois de ser rejeitada por quase um ano, está nas tratativas finais para a aquisição.

Na véspera, a Saúde enviara um ofício à embaixada da China no Brasil pedindo ajuda para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm. No documento, o secretário executivo da pasta, Elcio Franco, afirma que o Brasil corre o risco de paralisar a vacinação contra a Covid em razão da escassez de doses de vacina. “A campanha nacional de imunização, contudo, corre risco de ser interrompida por falta de doses, dada a escassez da oferta internacional. Por conta disso, o Ministério da Saúde vem buscando estabelecer contato com novos fornecedores, em especial a Sinopharm, cuja vacina é de comprovada eficácia contra a Covid-19”, escreveu Franco no ofício.

No entanto, parece pouco provável que haja uma mobilização mundial para ajudar um país com reputação tão baixa. “Para isso seria preciso, em primeiro lugar, que Bolsonaro mudasse sua orientação e valorizasse a vacina. Infelizmente, mesmo quando o Ministério da Saúde parece fazer tratativas para aquisição, ele segue fazendo pronunciamentos desacreditando a eficácia de vacinas. Também seria preciso que ele mudasse a orientação de sua política externa, hoje muito isolacionista e avessa à cooperação. Mas no curto prazo tudo isso é muito difícil, pois não há excedentes de vacinas que permitam esse tipo de caridade. Cada país está preocupado em vacinar sua própria população, e quem, por ideologia ou incompetência, não se preparou para essa fase, vai ficar pra trás”, disse Sá e Silva.

Se a necessidade de vacinas ainda não estava clara para o Planalto, na quarta-feira a conta chegou. E não pelos mais de 270 mil mortos que a pandemia já causou no país em pouco mais um ano de disseminação da infecção. Chegou pela política. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de ver suas condenações da Lava Jato serem anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, apareceu de máscara fazendo duras críticas às medidas adotadas pelo presidente da República. O movimento colocou Bolsonaro na defensiva. Imediatamente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), primogênito da família presidencial, postou uma foto do pai com os dizeres: “Nossa arma é a vacina”. E o pai protagonizou no Palácio do Planalto uma cerimônia com cenas atípicas. O presidente, seus ministros e auxiliares apareceram usando máscaras de proteção facial, equipamento já questionado pelo próprio mandatário, que costuma dispensar o uso de máscaras em eventos na sede da Presidência. Ali, a máscara era mais uma carapuça. E ela serviu.



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