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Cult e pop, Clarice Lispector brilha na academia, nas redes e nas livrarias

Em fevereiro de 1977, menos de um ano antes de sua morte, Clarice Lispector concedeu sua última entrevista, para a TV Cultura. Durante o programa, ao ser questionada sobre se considerava a si mesma uma escritora popular, respondeu: “Bom, me chamam até de hermética, como posso ser popular?” Essa contradição permanece viva no ano em que se comemora o centenário de seu nascimento, no dia 10 de dezembro de 1920. Continuamente abordada em trabalhos acadêmicos, à luz do feminismo e da psicanálise, entre outros recortes, a prosa clariciana volta e meia é revisitada pelo teatro, pela TV e no cinema - o longa “O Livro dos Prazeres”, com Simone Spoladore, foi lançado no mês passado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Na internet, alcançou nos últimos dez anos um status pop, escreve Eduardo Simões no Valor, em texto publicado sexta, 4/12.


Em sua maioria, as menções a Clarice na rede se referem a “memes” em que se atribui à escritora citações diversas, muitas vezes frases que não são de fato suas nem fazem parte de seus livros. Até 2010, o autor mais procurado com a palavra “frases” no Google, no Brasil, era William Shakespeare. Na última década, Clarice passou a ocupar a primeira posição e, de 12 meses para cá, a escritora é sucedida nesse ranking por Chico Xavier, Shakespeare, Albert Einstein e Augusto Cury.

No Instagram, a hashtag #claricelispector gera incríveis 7,5 milhões de interações, segundo pesquisa feita pelo Valor no CrowdTangle, ferramenta de monitoramento de redes sociais criada pelo Facebook. A julgar pelo neófito TikTok, Clarice também já começa a atrair atenção da geração Z: segundo sua assessoria no Brasil, a hashtag com seu nome resulta em 1,3 milhão de visualizações. Será que essa popularidade digital tem ecos mercadológicos?

“Acredito que essa movimentação em torno do nome de Clarice Lispector deva motivar algumas pessoas a procurarem seus livros para verificar, por conta própria, as razões de tantos comentários. O que, com certeza, findará conquistando novos leitores, já que sua obra é muito rica e instigante”, afirma Pedro Karp Vasquez, editor da obra da escritora na Rocco, que desde novembro de 2019 relança todos os seus livros, com novo projeto gráfico e posfácios inéditos.

O fôlego da obra de Clarice, mais de quatro décadas após a sua morte, um dia antes de completar 57 anos, em 9 de dezembro de 1977, prova que seus livros são “um bom negócio”, segundo Vasquez. “Já ouvi gente falando da ‘franquia Clarice’, mas me incomodou um pouco, talvez por causa da idade, que me impede de visualizá-la como heroína da Marvel”, pondera. “Digamos, em linguagem mais elegante, que Clarice é uma grife de luxo que vende muito bem.”

Não faltam exemplos dos bons negócios. Primeiro romance de Clarice, “Perto do Coração Selvagem” já está em sua terceira edição depois que foi relançado pela Rocco no fim do ano passado. A editora não revela a tiragem total, mas a média por edição supera os três mil exemplares. Seu último livro, “A Hora da Estrela”, já teve mais de 1 milhão de exemplares comercializados desde que a Rocco o publicou pela primeira vez, em 1998. Neste ano, foi o título de literatura nacional de autor clássico mais vendido, segundo levantamento da Nielsen.

Fora do Brasil as vendas também vão bem, como atesta Carina Pons, principal responsável pela obra de Clarice na agência literária espanhola Balcells, que desde 1978 comercializa os direitos de tradução pelo mundo. “A divulgação internacional não parou de crescer e se consolidar e agora está em um de seus melhores momentos”, afirma. “Os contratos de tradução foram triplicados nos últimos cinco anos, e sua obra atualmente está sendo publicada em quase 40 países, por editoras de prestígio, como Penguin [Reino Unido], Penguin Random House [Alemanha] e Shanghai 99 [China]”.

“Hoje o caixa está tilintando”, diz a biógrafa Nadia Batella Gotlib, autora de “Clarice: Uma Vida que se Conta” (1995). Enquanto viva, diz, a escritora não ganhou dinheiro com seus livros, tampouco seu trabalho no jornalismo. Ainda que ateste a popularidade de sua biografada no momento, especialmente no exterior, Nadia não a vê como mero boom.

“A gente tem notícia do que acontece agora, mas a notícia não traz a história. Fica-se com a noção de que tem uma explosão, porém se trata de mais uma etapa do que foi feito nas décadas anteriores”, afirma. “Com a internet, deu um salto. Inclusive em termos técnicos, com e-books. E também os projetos globais, com publicações em várias línguas, nos EUA, na França etc.”.

Nadia cita um documento da Unesco de 2012, segundo o qual Clarice é uma das escritoras de língua portuguesa mais traduzidas. “Eu fiz uma pesquisa, até 2010, antes do chamado boom de Clarice, com editores, tradutores, a agência Balcells etc., e encontrei, sem somar contos, só romances, 185 edições de obras traduzidas. Não é pouco. Sendo que quem mais traduziu foi a Espanha, depois França e Argentina, e aí Estados Unidos e Alemanha”, conta a biógrafa. “No total, se você vai até 2020, soma mais 123. Chega a 308. Tem um número muito grande numa década, em contraposição às décadas anteriores. Mas tem que considerar contexto histórico. Traduzir 600 páginas de ‘A Descoberta do Mundo’ nos anos 1990 é muito significativo. Havia muitas dificuldades.”

Nadia afirma que historicamente Clarice tem no meio universitário seu público cativo, pela excelência de sua obra. Fora da academia, diz a pesquisadora, a escritora sempre teve grande apelo junto a um público mais jovem, que se tornou cada vez mais fiel com a internet, a partir do fim dos anos 1990. Para o bem e para o mal.

“Aí começa a Clarice falsa. Já fui a cerimônias e seminários em que a pessoa fazia discurso pomposo citando algo que não era dela”, conta. “Contaminou no pior sentido. Como toda ‘fake news’, o jovem não tem noção do risco que corre e embarca. Tem um lado bom, de aumentar o território de divulgação, mas também esse que deseduca.”

Autor de um dos posfácios das novas reedições da Rocco, Carlos Mendes de Sousa, professor de literatura na Universidade do Minho, em Portugal, é mais otimista. Diz que muitas vezes os acadêmicos são críticos da forma como a obra se projeta descontextualizada nas redes sociais, às vezes até com erros. “Sinceramente acho que é um lado positivo, pois penso sempre que, com isso, Clarice, como outros autores, pode vir a ganhar mais leitores que se interessem pela obra”, afirma. “Capto esse movimento sobretudo no mundo de língua portuguesa. Não sei se Clarice já consegue ser uma espécie de ‘estrela pop’, nas redes sociais no universo inglês, italiano ou alemão.”

Como surge esse apelo junto a um leitorado jovem, que se renova geração após geração? Em 2008, quando lançou seu livro “Clarice - Fotobiografia”, Nadia creditava esse fenômeno à capacidade de Clarice de “traduzir traços da personalidade humana, sobretudo em fase de formação e em ritos de passagem”. E mais: “Ela possuía uma capacidade de fisgar o leitor em pontos sensíveis. E o adolescente está com a sensibilidade à flor da pele”. “A população jovem está diretamente ligada a Clarice. O filme ‘O Livro dos Prazeres’, por exemplo, tem por objetivo atingir esse público”, reitera Nadia.

A crítica literária e psicóloga Yudith Rosenbaum, autora do perfil “Clarice Lispector” (2006), considera que o interesse independe de idade. Mas, ainda assim, lembra: “Os textos de Clarice trabalham ritos de iniciação. Da infância para puberdade e da puberdade para a vida adulta. Como os contos ‘Restos de Carnaval’ e ‘Cem Anos de Perdão’, com ritos de sexualização da menina, e para os meninos, como ‘O Primeiro Beijo’ [os três presentes no livro ‘Felicidade Clandestina’, de 1971]”.

Para Teresa Montero, autora de “Eu Sou Uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector” (1999), e que há 30 anos pesquisa a produção da escritora, o fôlego de Clarice e a ampliação de seu alcance ao longo de décadas se deve, em especial, ao renovado cuidado editorial com sua obra. Como o lançamento de antologias, de suas correspondências e até mesmo o apelo das capas das novas reedições da Rocco, que estampam fragmentos de telas pintadas por Clarice. São também importantes para a difusão crescente, ressalta a biógrafa, os arquivos literários, como os do Instituto Moreira Salles e da Casa de Rui Barbosa, que abrigam itens diversos do acervo de Clarice e terão neste mês programações especiais em homenagem a seu centenário.

Teresa Montero faz coro com Nadia Batella Gotlib e afirma que a grande divulgação em torno da escritora é resultado de um processo, e Clarice, ressalta, teve reconhecimento em vida. Quando lançou “Perto do Coração Selvagem” em 1943, a autora recebeu críticas elogiosas de nomes de peso, como Antonio Candido e Lauro Escorel. E a popularidade veio, em seguida, de modo progressivo, após a sua morte.

“Como costuma acontecer naturalmente, é nesse momento que um autor passa a ser estudado. Clarice falece no fim dos anos 1970 e a gente tem que pensar aí num aspecto importante, que é a emergência do feminino na literatura”, lembra Teresa. “Os departamentos de letras passam a ser constituídos de professoras, que fazem suas teses e dissertações dentro desse enfoque. O movimento feminista eclode nos anos 1970 na Europa e só chega com força no meio acadêmico brasileiro nos 1980. As pesquisadoras, que acabaram criando um nome atrelado à recepção de Clarice, surgem nessa década. E na década de 1990 isso explode.”

A crítica feminista, continua Teresa, alçou a produção de Clarice a um patamar diferenciado em relação a outros escritores brasileiros, inclusive no exterior. Ela recorda que, em 1975, a jornalista Clélia Pisa, então radicada na França, veio ao Brasil entrevistar a escritora para a antologia “Brasileiras” (1977), feita em parceria com a tradutora Maryvonne Lapouge, pela Éditions des Femmes, casa que posteriormente viria a publicar os livros de Clarice em francês. Por trás da editora estava Antoinette Fouque, porta-voz do movimento feminista na França.

“Depois vieram outras formas de popularização, que atribuo ainda às adaptações, para o cinema e o teatro, principalmente. E aí o caso marcante do filme ‘A Hora da Estrela’, de Suzana Amaral, de 1985. Teve também um espetáculo de sucesso que Aracy Balabanian fez, ‘Perto do Coração Selvagem’ [1998]”, diz Teresa, lembrando ainda das versões para os palcos dirigidas por Fauzi Arap que, por sua vez, também levou Clarice ao universo musical, em shows de Maria Bethânia como “A Rosa dos Ventos”, em que a cantora declamava um trecho de “Água Viva”, romance então inédito.

Em vida, a popularização de Clarice se deu também, e em grande parte, na imprensa, que a escritora considerava como, além de fonte de renda, meio de divulgação de sua ficção, como lembra a pesquisadora Aparecida Maria Nunes, autora de “Clarice Lispector Jornalista: Páginas Femininas & Outras Páginas” (2006). O livro se debruça sobre a trajetória de Clarice na mídia impressa brasileira, iniciada ainda nos anos 1940 e que se estende à década de 1970.

Essa produção inclui contos, colunas de variedades, entrevistas etc., publicados em diários como “A Noite”, “Correio da Manhã” e “Jornal do Brasil”, e revistas, entre elas “Senhor”, “Fatos e Fotos/Gente” e “Manchete”. De todos os veículos, Aparecida destaca a “Senhor”, em que Clarice publicou contos a partir de 1959, como sendo “um divisor de águas na carreira literária” da autora.

Em meados dos anos 1950, Clarice Lispector não encontrava editor. “A ficção de Clarice não interessava ao mercado editorial que privilegiava o ‘realismo socialista’. Para simplificar: ela não encontra editor para publicar ‘A Maçã no Escuro’ e os contos que mais tarde farão parte de ‘Laços de Família’”, conta Aparecida. “A ‘Senhor’, então, foi a responsável por tornar conhecidos os contos ‘Feliz Aniversário’, ‘Uma Galinha’, ‘A Imitação da Rosa e ‘O Búfalo’, entre outros”.

Além da recepção pela teoria crítica feminista e da divulgação obtida por seu trabalho na imprensa, a obra de Clarice se tornou popular entre psicanalistas. Em seu “Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras” (2002), Nelly Novaes Coelho afirmava que Clarice é a “primeira voz, na literatura brasileira, a expressar a agônica/desafiante crise do conhecimento do ser e do dizer” e que “é vista hoje, ao lado de Guimarães Rosa, como um dos vértices mais altos da nossa moderna ficção de húmus metafísico”.

Yudith Rosenbaum concorda com Nelly e afirma que a prosa clariciana começou a ser olhada por um viés “mais metafísico” já nos anos 1960, pelo crítico Benedito Nunes, autor do ensaio “O Mundo de Clarice Lispector”. E, dos anos 1980 para os 1990, as leituras mais psicanalíticas passaram a ser conhecidas.

“Clarice foi abordada por esse viés porque põe em cena o sujeito moderno, numa literatura da modernidade, que é herdeira das grandes vanguardas, desse novo paradigma que vem com monólogo interior, fluxo de consciência, associação livre”, diz Yudith. “São técnicas de escritores como Virginia Woolf e James Joyce, por exemplo, que trouxeram uma nova forma de representar o mundo psíquico, das relações internas. Que não é separado da realidade externa. Tudo está diretamente atrelado ao que acontece no entorno do personagem, do ponto de vista social, político etc.”

A crítica considera um prato cheio para psicanálise, levando em conta as falas dos personagens, nas ações, nas fantasias e no mundo fantasmático. “Internalizações de crenças, ideologias, superegos culturais e o conflito. É uma dimensão de subjetividade que foi estudada por Freud. Um sujeito cindido entre suas pulsões, demandas internas e necessidades inconfessáveis e o que é possível de expressão desse mundo interno diante das condições sociais.”

Hermética e popular, Clarice figura, afirma Vasquez, entre “os autores mais presentes nos estudos literários universitários”. Uma busca na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações traz quase 140 resultados, somente nas duas últimas décadas. Para Aparecida Nunes, o reconhecimento da escritora na academia só aumenta, especialmente na área que ela pesquisa desde 1982: “Estabelecer as relações entre literatura e jornalismo em Clarice Lispector tem sido um viés muito difundido. Os trabalhos se multiplicaram, principalmente na pós-graduação em comunicação social”, diz.

Essa “popularidade” da produção de Clarice junto às universidades redunda num maior reconhecimento de sua obra no panteão literário brasileiro? Como ela estaria, por exemplo, em relação a Guimarães Rosa e Machado de Assis? “Não sou professor nem crítico literário. Só posso emitir uma opinião pessoal, sem peso acadêmico: para mim Clarice situa-se entre os dois, abaixo de Machado de Assis e acima de Guimarães Rosa”, afirma Vasquez.

Para Nadia, alguns veem Clarice no mesmo nível dos melhores escritores brasileiros, ainda que muito diferente deles. “Machado tem aquele olhar arguto de homem, que olha pela fresta e diz: ‘Vocês estão sendo iludidos ou sendo enganados por uma sociedade que é terrível’. O olhar dele é eminentemente crítico, contundente, implacável e de denúncia, com muita perspicácia e sutileza em relação aos sentimentos das pessoas. O Rosa criou o mito da cultura brasileira sertaneja, e ali tem toda a condição humana”, explica. “A Clarice, começa que não é a visão de um homem. Ela olha para a classe média brasileira, sobretudo para o papel da mulher, e vê também, com sutileza, os padrões que tolhem a liberdade dessa mulher. De certa forma, faz a revolução dela. Ela propõe uma linguagem contra convenções. Não existe um livro como ‘A Paixão Segundo G.H.’, ele é muito original. Ela faz uma literatura revolucionária e radical, porque ela vai desmontando a linguagem daquilo que parece ser supérfluo. Num processo contrário a Rosa.”

Carlos Mendes de Sousa vai além e constata “um lugar cimeiro” para a produção da brasileira, no contexto das literaturas em língua portuguesa. “Seria interessante considerar um cânone literário, numa perspectiva supranacional, com vista ao ensino do português. E aí, em meu entender, figurará sempre o nome de Clarice, quaisquer que sejam os critérios”, diz. “’A Paixão Segundo G.H.’, por exemplo, é um dos textos mais extraordinários a par das grandes obras de qualquer literatura.”

Teresa Montero cita o americano Earl Fritz Vanderbilt, pesquisador de literatura brasileira nos EUA, para quem Clarice está “na mesma linhagem de Machado de Assis”. E mais: “Ela é um divisor de águas na narrativa brasileira, como Guimarães Rosa, que é seu contemporâneo. E esse reconhecimento não é abalado, pelo contrário, foi cada vez mais fortalecido. No centenário, apenas se constata”.

Amiga de Clarice por 18 anos, Nélida Piñon avalia o momento por caminhos diferentes. Para ela, que no dia 10 participa de tributo ao centenário de Clarice durante a 1ª Bienal Virtual do Livro de São Paulo, a obra da amiga surpreende por não ter ido para “o limbo literário” após sua morte, como costumaria ocorrer com escritores. “Clarice foi ascendendo à medida que as novas sensibilidades contemporâneas foram descobrindo nela a simbologia de seu discurso.”

Para Nélida, a ficção clariciana ajuda a expandir a literatura brasileira pelo mundo. “Coisa que a Machado de Assis, extraordinário, custou mais de 100 anos. O Guimarães Rosa é famoso, tido como gênio, mas não teve as traduções maravilhosas que teriam permitido a descoberta dele. As existentes não fazem jus à sua elaboração estética”, afirma. Para Nélida, Machado de Assis é inatingível. “Ele até me irrita. É o grande gênio da literatura brasileira. Mas o importante é a maravilha de estarmos celebrando os 100 anos de Clarice, em pleno fulgor de sua obra.”



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