Vito e Michael não conseguiram proteger a família Corleone da violência do mundo, mas seus “pais”, Francis Ford Coppola e Mario Puzo (1920-1999), finalmente salvaram do inferno o mais jovem dos filhos, “O Poderoso Chefão 3”. Enxovalhado por crítica e público desde sua estreia, no Natal de 1990, o filme retorna remasterizado, honrando a fotografia baseada em amarelo, vermelho e “escuro Rembrandt” assinada por Gordon Willis (1931-2014) desde o primeiro filme da série, de 1972, com uma nova montagem e, o fato mais significativo, como “O Poderoso Chefão - Desfecho: A Morte de Michael Corleone” - exibido nos cinemas e no “streaming”, escreve Paulo Santos Lima em excelente resenha no Valor, publicada em 11/12.
O título foi determinante sobre o que seria o filme. Desde 1978, a Paramount pretendia aproveitar o sucesso dos dois “Chefões”, mas Coppola estava imerso em outros projetos, como “Apocalypse Now” (1979). O aceite veio em 1989, pois seria um meio de o diretor sanar as dívidas de sua produtora, American Zoetrope, que vinha desde “O Fundo do Coração” (1981), e, também, novamente trabalhar com Puzo, autor do livro original e base do primeiro filme, no roteiro do novo projeto.
Coppola não via esse trabalho como um terceiro capítulo da saga dos Corleone, pois, ele mesmo dizia, havia minado o material emocional daquela família e “não era uma daquelas histórias de Sherlock Holmes em que se cria uma nova aventura”.
A ideia era que o filme enfeixasse os outros dois, numa espécie de reflexão e juízo moral feitos pelo próprio Michael (personagem de Al Pacino) sobre a vida que o destino lhe impôs. A Paramount foi irredutível e impôs o “Parte 3”, o que afetou a montagem e, sobretudo, a expectativa do público.
Em suma, o novo corte muda o início e o fim e limpa algumas passagens, fazendo a narrativa se concentrar mais no tempo presente de um Michael reflexivo e nas alusões, por “espírito”, aos outros filmes. A nova abertura, por si, remete à primeira cena de “O Poderoso Chefão”: ali, Vito Corleone (Marlon Brando) atendendo um agente funerário, e, agora, Michael sendo solicitado por um arcebispo para salvar o Banco do Vaticano.
A tal “morte de Michael Corleone” não será literal como a da versão de 1990, e sim uma morte em vida, com ele pagando seus pecados no mundo dos vivos. Essa morte pode ser entendida também, metalinguisticamente, como o fim do personagem conhecido pelos filmes de 1972 e 1974.
Agora, Michael, aos 59 anos, abatido por uma diabetes que deixa clara a fragilidade de um corpo que antes era uma espécie de armadura, carrega todo o “peso da gravidade” - como Coppola pedia para Al Pacino pensar na construção desse “velho novo Michael”. Mais dócil, o Michael Corleone de agora é, de certo modo, um conceito cinematográfico que retoma a narrativa e a revisa sob uma análise moral.
Michael aproveita a viagem a Sicília, terra natal da família Corleone, para se confessar. “Eu matei o filho da minha mãe”, diz ele, aos prantos, sem arrependimento, mas com muita culpa e dor, ou seja, a redenção lhe será impossível. Desavisados, o público e a crítica sentiram-se enganados, pois aquele Michael convictamente imerso nas sombras de repente buscava a luz, demonstrava fraqueza.
A toada daquele “O Poderoso Chefão 3” era desconcertante, também, porque era melancólica e lúgubre. Não é diferente agora, mas o reencontro entre a memória daquela versão e a descoberta desta de 2020 aflora justamente a percepção e a constatação de que estamos diante de uma obra de arte.
No melhor da tradição da indústria de Hollywood em miscigenar arte e comércio, “O Poderoso Chefão” está no imaginário coletivo por suas qualidades narrativas e formais, e este “O Poderoso Chefão - Desfecho: A Morte de Michael Corleone” é uma obra de arte completa - consciente de si e apontando algo sobre o mundo.
Força nos outros dois filmes, a trama é até mais ousada aqui - puxa fatos reais, como o papa João Paulo I, no filme assassinado por suas ideias progressistas e honestidade que batiam de frente com a corrupção endêmica do Vaticano - e será com base nela que o filme mostrará uma situação (desairosa, diga-se) do mundo, onde a família, esse abrigo de amor e violência, é a base numa lógica perversa que relaciona lealdade à traição, sacrifício à perdição, história à paranoia.
A súmula dessa lógica de catarse e dor está no próprio filme. No antológico momento em que Michael solta aquele grito surdo, com sua filha Mary (Sofia Coppola) morta em seus braços, entoado pelo “intermezzo” da “Cavalleria Rusticana”, de Mascagni, revelando-se um inesperado Michael, está ali um dos momentos mais belos e doídos da história do cinema.
Espécie de herdeiro cinematográfico do Quattrocento italiano, Coppola fez, já em 1990, mas sobretudo agora, uma forte obra sobre duas outras obras à altura, nessa “coda” que não deixa de ser uma retomada do próprio Coppola como cineasta em atividade.
“O Poderoso Chefão - Desfecho: A Morte de Michael Corleone”. Onde ver: Now, Sky, Apple TV, entre outros / AAA
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco
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