Amigo leitor, esta é a última coluna do ano. Ano sui generis. Ano de um esforço de guerra mundial, literalmente, para o qual o mundo não estava preparado e muito menos nós, brasileiros, que nunca vivemos uma guerra dessas proporções em nosso território. A analogia com uma guerra contempla as dificuldades logísticas, o desconhecimento do que fazer que todos vivenciamos e o medo e ansiedade que uma bomba caia em nossa casa. A bem da verdade, uma guerra que mais parece saída de um roteiro de ficção científica. No mais famoso desses roteiros, a “Guerra dos Mundos” publicado em 1897 pelo escritor inglês HG Wells, o planeta era invadido por marcianos com armas desconhecidas e que se alimentavam de sangue humano. A falta de qualquer conhecimento sobre os invasores e suas armas tornavam qualquer resistência inútil. No fim, um acontecimento fortuito, a presença de uma bactéria no sangue humano, dizima os invasores e a população do planeta sobrevive, escreve Iran Gonçalves Jr. no Valor, em artigo publicado dia 4/12, continua a seguir.
Esse é, até hoje, o enredo padrão dos filmes que exploram esse filão, um inimigo totalmente desconhecido, um golpe de sorte de um Davi, um Golias vencido e vida que segue.
O coronavírus não é extraterrestre, mas a nova espécie que atingiu os seres humanos não havia se manifestado anteriormente, nesse sentido é o inimigo alienígena do qual sabemos muito pouco.
Com os primeiros relatos da China, cientistas e médicos do mundo inteiro passaram a estudar a composição genética e estrutural do vírus, os quadros clínicos associados à infecção, o modo e a velocidade de transmissão, os potenciais tratamentos de pacientes infectados e, o mais importante, a desenvolver vacinas para prevenir a infecção. Nesse ponto, a vida se separa da ficção, não se espera uma solução fortuita ou um golpe de sorte.
Apesar de, no imaginário popular, a maçã que caiu na cabeça de sir Isaac Newton ser a responsável por toda a teoria da gravitação, não é assim que a ciência funciona. A ciência caminha a passos lentos, verdades de hoje podem ser considerados enganos amanhã. A boa ciência e os bons cientistas são humildes, teorias-padrão são constantemente desafiadas pelos dados da realidade, alteradas por novos entendimentos e tecnologias. Trabalho duro é o que pode fornecer respostas.
Nesse processo há muita frustração dos pesquisadores e da opinião pública com aparentes becos sem saída, mudanças de conceitos e verdades transitórias. Se os pesquisadores entendem o caminhar da ciência, a população facilmente se confunde ou é confundida por outros atores que não têm no método científico sua inspiração e se aproveitam para difundir crendices e opiniões baseadas em conveniências de momento.
Ninguém teria a ideia de substituir um engenheiro calculista pelo palpite mais atraente na construção de um edifício. Ninguém talvez seja um exagero, mas vemos o resultado nos jornais quando o prédio desaba. É fácil constatar o erro.
Quando se trata de questões de saúde, porém, todos achamos que conhecemos melhor o funcionamento do nosso corpo e nossa saúde que os pesquisadores e médicos. Confronta-se o método científico não com uma teoria ou análise alternativa dos dados, mas com uma opinião pessoal do que se acha que é melhor. É difícil ver as armadilhas no caminho.
Nesta pandemia, esse traço psíquico foi exacerbado pela divulgação de opiniões pessoais amplificadas por vários canais de comunicação sem crítica e que encontraram eco no medo do desconhecido e no anseio por resultados fáceis, simples e definitivos.
Em ciência, a solução fácil, simples e definitiva está geralmente errada.
O conhecimento sobre a covid-19 avançou rápido. Esse conhecimento possibilitou que diversas vacinas fossem propostas em tempo recorde. Possibilitou, também, que estratégias de controle da disseminação da doença e de tratamento fossem desenvolvidas.
A implementação desse conhecimento salva vidas, sua negação aumenta o número de mortos.
Mesmo quando as vacinas chegarem, haverá necessidade de cuidados além da imunização. Aqui não há novidade, mesmo vacinados contra o tétano, não devemos nos cortar com objetos enferrujados.
Teremos um outro ano desafiador em 2021.
Scientia vinces, expressão latina que se traduz por “Vencerás pela ciência”, é a divisa da Universidade de São Paulo (USP) e nos lembra que o método científico, apesar de ser árduo, é o caminho a ser seguido. Vencer nossas resistências e confiar no que pesquisadores e médicos orientam é a melhor maneira de nos mantermos seguros.
Desejo a você, amigo leitor, um ano-novo com saúde e esperança que estes tempos turbulentos sejam ultrapassados com brevidade.
Iran Gonçalves Jr., médico intensivista, cardiologista do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e responsável pelo PS de Cardiologia do Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, escreve neste espaço mensalmente
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