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Hoje a coluna é diferente: Mario desenha e Bruna, a ilustradora, escreve

Vale muito a leitura deste texto, publicado na Folha de S. Paulo neste sábado, 12/12. Um encanto. 


Oi. Sou Bruna Barros. Todo sábado faço a ilustração da coluna do Mario. Hoje decidimos mudar: eu escrevo o texto e ele faz o desenho. Por quê? Porque estou vivendo uma experiência bem legal.

Sou de Timóteo, em Minas, e moro em São Paulo, num sobrado na Pompeia com o Allen, que veio de Sergipe e é músico. Temos três gatos. A pandemia nos pegou em cheio.

Mudamos para o sertão porque São Paulo ficou difícil com a doença, o aluguel é mais barato e senti uma grande vontade de tentar outra maneira de viver.

Ilustração que lembra um desenho feito por uma criança. Há um sol cor de rosa, nuvens, quatro pessoas, uma casa no centro da imagem, um cacto e uma árvore plantados no gramado. A casa é uma foto de uma casa real com detalhes em caneta hidrocor verde e roxa. Na foto, há uma porta e uma janela abertas, uma cadeira dobrável na frente da casa e um cacto plantado num vaso

Viemos para Ilha do Ferro. É um vilarejo de uns 450 moradores onde muitos vivem de artesanato. Fomos de avião até Aracaju e de lá viajamos uns 200 quilômetros por asfalto, rio e terra.

O carro deu uma lapada e os gatos se lamentaram nas suas caixinhas. Tudo estava verde, o riacho corria sob uma ponte que não dava para saber se era uma obra inacabada ou um pedaço de asfalto que esborrachou. Me perguntei: que loucura foi essa que inventei?

Pequenas casas despontaram entre catingueiras, parabólicas, pés de xique-xique e mandacaru. O rio São Francisco surgiu, azul e majestoso. Nossa casa é como as fotos na internet: janelas pequenas, telhado de duas águas, sem forro. O quintal é puro mato, desordenado e habitado por gatos de rua.

Saímos para dar uma volta. Na mercearia havia uma placa: “Proibido entrar sem máscara”. Até na rua a ordem era respeitada. Com o aluguel oito vezes menor que o de São Paulo, e os gastos mensais reduzidos, podemos respirar. Somos um casal de artistas no Brasil da pandemia.

A doença trouxe prosperidade ao lugar. As pessoas aproveitaram o auxílio emergencial para pôr sonhos em prática: um barzinho na beira do rio, um quarto para os filhos, umas cabeças de gado.

Mesmo um tempão depois de chegarmos, continuamos a ganhar presentes dos vizinhos. Eles dão mel, abóbora, mamão, couve, tomate-cereja, quiabo, banana, feijão de corda e prosa, muitos dedos de prosa.

Começamos a cuidar do quintal e nosso vizinho ajudou. Ele é jardineiro, e também artesão e às vezes pedreiro: aqui todos fazem tudo. Enquanto metia a enxada no chão seco e cheio de pedras, ele dava um risinho ao ver nossa inabilidade.

Com os meses, o verde da paisagem sumiu. O sol queima a pele e resseca tudo. As máscaras também desapareceram. As pessoas dizem: “Quem tinha que pegar já pegou”, “tá uma confusão danada com esses testes”. Muitos desconfiam da vacina, dizem que não irão tomá-la.

Acordamos cedo e varremos a casa. É uma luta lidar com a terra que entra com as ventanias. Acabei um projeto de ilustração, comecei outro e montei um ateliê. Ele fica na sala, com portas e janelas para a rua. Allen fez um estúdio no quarto.

Uma vizinha de 13 anos começou a entrar. Ela gosta de organizar os materiais: pincéis com pincéis, tintas com tintas. Dois meninos, que passam na porta tocando gado, também gostaram da nossa casa e deixo que pintem.

Surgiram outros dois garotos. Eles adoram violão e vão direto para o estúdio do Allen. Tem dia que passam três vezes. Os violões são maiores que eles. Todas as crianças usam celular. Só a música e o desenho fazem com que desgrudem deles.

São tantas as crianças que tive de mudar o ateliê. Só no primeiro dia vieram umas 20. Consegui uma casa emprestada e as meninas ajudaram a levar o material para lá. Com o dinheiro que arrecadei no Instagram comprei aquarela, nanquim, tinta acrílica e muito papel.

Cada dia elas chegam mais, têm de três a 20 anos. Quanto menor a criança, maior a fluidez e a liberdade dos desenhos: assim como a fala é uma continuidade da boca, o desenho é uma continuidade da mão.

Não sei o que os pais pensam do empenho das crianças. Também não sei. Mas acho que o mundo devia ter mais fé na arte.

Na eleição, a cidade se dividiu entre a chapa verde e a lilás. Todos sabiam os jingles, mas ninguém falava de saneamento, um problema enorme. A meninada torcia pelos lilás. Um deles explicou: “Os verdes pegaram o dinheiro da merenda escolar e passamos um ano comendo melancia”.

As promessas de campanha eram emprego e “dinheirinho pro lanche”. No dia da votação, a cidade parecia “Bacurau”: deboche, lacração e cerveja. E nada de política.

Allen joga futebol num campinho da vila ao lado e faço anotações do que vejo. À noite, gosto de sentar na janela do quarto e ficar olhando o céu estrelado. A cantoria que vem da igreja evangélica se mescla com estrilados, coaxados e zumbidos. Estou feliz de estar aqui.

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



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