País singular, de história lenta e de consciência política vagarosa, só nas eleições de novembro de 2020 a verdade das eleições de 2018 começou a ficar um pouco mais evidente. Nossa consciência política tende a ser consciência de desilusões, e não consciência de possibilidades históricas de mudanças. Exige a revisão periódica de decisões sempre provisórias de um eleitor superficial. Naquele ano de 2018, no cenário de nossa alienação política, Jair Bolsonaro foi o que sobrou. Elegeu-o o voto residual de um eleitorado órfão de referências para decidir. Ele personifica a desilusão num processo que já vinha de anos, de falta de alternativas abrangentes e transformadoras. É o que se pode inferir da soma dos votos nulos, brancos e das abstenções, se os considerarmos como votos por omissão contra o conjunto dos partidos e dos candidatos. Os votos em ninguém. Mesmo que não incluíssemos os casos de impedimentos incontornáveis, escreve Martins em sua coluna no Valor. Vale a leitura, continua a seguir.
Se comparamos os votos recebidos por um candidato com o número de eleitores que optaram por ninguém, o índice de decisão por votar no candidato vencedor, Lula, em 2002, foi de 1,9. Quase o dobro dos votos em ninguém. Já em 2018, o índice dos que votaram em Bolsonaro foi de 1,4 em relação à soma de votos em ninguém. Portanto, Jair Messias não foi o candidato que preenchesse o enorme buraco negro do cenário eleitoral brasileiro, o representado pelo vazio do que um número significativo de eleitores sem opção não o considerou merecedor de seu voto. Muitos desiludidos não acharam que era ele a alternativa. Continuaram desiludidos como se viu nas eleições de agora.
Nos dois turnos dessas eleições, o buraco negro continuou aberto. Mas indicando opções opostas às de 2018. Em várias e importantes cidades brasileiras, os candidatos eleitos, ou colocados em primeiro lugar para disputar o segundo turno, tiveram menos votos do que a soma de brancos, nulos e abstenções. Em várias cidades importantes, a soma dos votos dos dois primeiros colocados é inferior ao número de brancos, nulos e abstenções. Em Campinas, a soma dos três primeiros colocados é inferior ao número de eleitores contra todos.
Essas eleições cavam um fosso maior ainda no cenário político ao expressar a não opção, nem pela direita nem pela esquerda. A polarização ideológica perdeu a eleição. O que explica por que dois terços dos candidatos que Bolsonaro apoiou abertamente foram derrotados. Uma indicação de afastamento dos eleitores em relação à sua ideologia esdrúxula e ao seu governo errático.
Lula também perdeu ao ver confirmado o significativo declínio da influência do PT no país e, simbolicamente, no chamado cinturão vermelho da Grande São Paulo. O partido elegeu apenas dois candidatos a prefeito nos nove municípios que o abrangem, os das cidades-dormitórios, não os das fábricas. Área que se desindustrializou nas últimas décadas, o que anulou as bases de uma ideologia proletária da política. Ali surgiu uma poderosa camada de trabalhadores de classe média mais identificada com posições políticas de centro. Isso é também derrota para Bolsonaro, refém da polarização ideológica protagonizada pelo PT, que ele assumiu como tática política extemporânea.
A grande revelação da nova realidade política do país é a de uma nova esquerda, jovem, atualizada, fundamentalmente uma esquerda urbana e não proletária, com Edmilson Rodrigues, em Belém, Manuela D’Ávila, em Porto Alegre, e Boulos em São Paulo. Uma esquerda cujo sujeito de referência é a cidade da urbanização patológica.
A votação de Boulos no primeiro turno mostra que uma grande parcela da população paulistana tem da realidade social da cidade uma consciência crítica, renovadora e criativa. Ele compreendeu isso. E não é só por ser de esquerda. Muita gente de uma esquerda obsoleta não tem mostrado que é capaz de compreender o real e suas possibilidades. Os três nomes indicados parecem personificar a esquerda clássica no confronto com a esquerda popular e aparentemente ultrapassada de Lula.
A vitória do centro não bolsonarista, um retorno ao centro moderado de base local, porém moderno, indica um retorno à ordem e, de vários modos, a rejeição do bolsonarismo e do lulismo. A derrota do candidato bolsonarista e pentecostal no Rio de Janeiro mostra a recusa à associação dos evangélicos com a direita.
A derrota do candidato bolsonarista e pentecostal no Rio de Janeiro mostra a recusa de muitos protestantes e evangélicos à associação de suas igrejas com a direita, sensíveis que são ao legado da Reforma e ao republicanismo autêntico. E no lugar do pensamento retrógrado, os discursos de Covas, Boulos e Paes, indicam vitória da civilização contra a barbárie.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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