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Natalia Pasternak: “Se seguir o que Bolsonaro recomenda, vou morrer”

Depois de um ano de notícias assustadoramente ruins, a terça-feira 8 de dezembro amanheceu com uma grande dose de esperança. A britânica Margaret Keenan, de 90 anos, tornou-se a primeira pessoa do Reino Unido a receber de maneira oficial - não em fase de testes - uma vacina contra a covid-19. Do Hospital Universitário de Coventry, ela afirmou se sentir “privilegiada” ao tomar o imunizante fabricado pela Pfizer e BioNTech. Outros países estão bem posicionados para experimentar, com a vacinação em massa, um “antes” e um “depois” da trágica pandemia que já matou mais de 1,5 milhão de pessoas. No Brasil, entretanto, o cenário parece nebuloso, atrasado e imerso em uma intensa politização do tema. “Enquanto discutimos prioridades para a imunização e outros temas, estamos deixando de lado a questão fundamental: que vacina?”, pergunta a microbiologista e pesquisadora Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência (IQC) e da revista digital homônima, que completam dois anos, escreve Monica Gugliano em reportagem publicada no Valor em 11/12. Continua a seguir.

 

O Brasil tem poucos acordos bilaterais para as vacinas. Um, restrito a São Paulo, com a CoronaVac, desenvolvida na China e que será fabricada aqui em parceria com o Instituto Butantan, e outro com a AstraZeneca, de Oxford. Além disso, o governo assinou um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS), que dará acesso a mais nove vacinas que forem aprovadas, mas que só poderão ser usadas em 20% da população. Na segunda-feira, o Ministério da Saúde confirmou, também, que negocia a compra de milhões de doses da mesma vacina usada no Reino Unido.

Na comparação com outras nações, no entanto, são medidas lentas demais e muito modestas diante da gravidade do quadro e da demanda por uma multiplicidade de vacinas. “O governo federal tem que fazer novos acordos para que não fiquemos com todos os ovos na mesma cesta, excluindo por questões ideológicas, e não técnicas, a CoronaVac. A estratégia tem que ser repensada”, recomenda Natalia, também pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

Em São Paulo, caso a CoronaVac seja aprovada, a previsão do governo é que a vacinação comece em 25 de janeiro. Primeiramente, no plano do governo federal, a expectativa era que a imunização fosse iniciada em março. Na quarta-feira, porém, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mudou o tom. Disse que, caso a Pfizer consiga adiantar a encomenda, além da autorização da Anvisa, o começo da vacinação “pode acontecer no final de dezembro ou em janeiro”.

Apesar das boas notícias, ainda é preciso manter a cautela, alerta Natalia. “Vai demorar um pouco para termos vida normal, até que grande parte da população seja vacinada. Antes disso, vamos precisar seguir com as medidas preventivas de usar máscara, evitar aglomeração, fazer distanciamento”, pondera a cientista. Ela cita ainda algumas dúvidas: no momento não há como saber quanto tempo dura a imunidade conferida pelas vacinas. “Não sabemos se será preciso revacinar periodicamente. Pode ser que a imunidade seja duradoura, pode ser que não. Saberemos com o tempo”, diz ela.

O rosto que se vê pela tela do computador neste início de tarde tornou-se muito familiar em tempos de pandemia. Natalia virou referência em programas de TV para esclarecer os enigmas do novo coronavírus. Com delicadeza, ela começa a abrir o pequeno embrulho do sanduíche de pastrami da Z Deli Sandwiches com a intimidade de quem está acostumada a substituir refeições por lanches para não interromper o trabalho em frente ao computador. É assim neste “À Mesa com o Valor” por videochamada.

“Este sanduíche é uma das minhas comidas favoritas. É muito bom.” Inspirado em similares tradicionais em Nova York, o sanduíche é um dos carros-chefes da Z Deli, pequeno restaurante com origem judaica fundado em 1981 nos Jardins e que hoje tem algumas filiais em São Paulo especializadas em lanches.

Natalia está em seu apartamento no bairro paulistano de Vila Madalena, onde mora com o namorado, a filha e duas gatas. Como alimentar-se e trabalhar são práticas rotineiras, ela segue naturalmente, com o sanduíche em mãos, falando de ciência: apesar da esperança com as vacinas, alerta que os imunizantes não põem um ponto final nas ameaças de outras e novas pandemias. “Temos explorado nosso planeta de forma muito predatória. Esta, certamente, não será a última pandemia. Se não pararmos de explorar dessa forma, vamos esbarrar em outros vírus emergentes.”

Autora do livro “Ciência no Cotidiano: Viva a Razão. Abaixo a Ignorância!” e colunista de “O Globo”, Natalia, de 44 anos, tem dedicado energia e recursos à popularização da ciência. Com um de seus inspiradores, o astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996), ela desenvolveu um vínculo inédito. Tornou-se a primeira integrante brasileira do Comitê para a Investigação Cética (CSI, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos criada pelo cientista que utiliza a ciência e a razão para investigar casos controversos e extraordinários. Ao lado de Natalia estão celebridades da comunidade científica internacional, como o biólogo britânico Richard Dawkins e o astrofísico americano Neil deGrasse Tyson.

A outra inspiração da brasileira é o mágico James “Amazing” Randi (1928-2020). Canadense, ele deixou um legado de mais de 50 anos de trabalho ao desmascarar pseudocientistas e supostos paranormais. Entre os mais célebres está o israelense-britânico Uri Geller, que fez sucesso no Brasil nos anos 1970 em turnês e na televisão ao entortar talheres afirmando usar apenas o poder da mente.

Embora com formações e métodos diferentes, Sagan e Randi, grandes defensores do pensamento racional, mostraram que a ciência, se não for fruto de muito trabalho, método, estudo e pesquisa, não passa de crença ou ilusionismo. “A ciência não funciona acreditando em alguém. O método científico não é intuitivo. Tem que ser aprendido”, afirma.

Sagan se tornou conhecido mundialmente nos anos 1980 pela série de TV “Cosmos”, referência para uma geração de cientistas. Nos programas, o astrônomo que foi consultor e colaborador da Nasa destrinchava com desenvoltura e clareza complicadas teorias sobre o universo. “Se, nos dias de hoje, os jovens lessem e conhecessem ‘O Mundo Assombrado pelos Demônios’, teríamos gerações que acreditariam muito menos em toda e qualquer bobagem que encontram na internet.”

Nesse livro de 1995, escrito com sua mulher, Ann Druyan, Sagan recomenda que as pessoas busquem conhecer e separar a ciência da pseudociência ou da “bad science” (má ciência) e diferenciar a crítica do ceticismo. “Sempre gosto de citar uma frase de Sagan, que, mais ou menos, dizia que as pessoas compreendem muito pouco o processo científico e como a ciência gera conhecimento e tecnologia, ficando vulneráveis a situações absurdas”, diz.

Filha da arquiteta e professora Suzana Pasternak e do professor de matemática financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV) Mauro Taschner, ambos aposentados, Natalia diz que ficou orgulhosa quando recebeu a indicação para o CSI. Ela cresceu lendo livros do americano Isaac Asimov (1920-1992), um dos mais importantes autores de ficção científica do século XX, que também acreditava no método científico como a melhor forma de compreender o universo.

Na juventude, entretanto, teve outros planos: pensou em ser bailarina. Sempre gostou de dança, música, artes e literatura e estudou balé clássico em Londres. Mas percebeu que não levava jeito para a arte. Quando voltou ao Brasil, decidiu estudar ciências biológicas na Universidade de São Paulo (USP), onde se encantou pela genética e biologia molecular, área em que fez seu doutorado, pesquisando sobre a reação das bactérias em situações de estresse e o funcionamento dos genes.

Foi no doutorado que Natalia teve o estímulo para trabalhar na divulgação do conhecimento científico. “Saber nada, ou quase nada, é uma receita para o desastre. Não saber como as coisas funcionam é o alimento para o pensamento mágico”, afirma.

Depois de três anos em que se dedicou exclusivamente à maternidade, Natalia voltou aos laboratórios. A convivência com outras mães reforçara sua ideia de que era preciso investir na divulgação do conhecimento científico. Foi então que um episódio chamou sua atenção e a levou a pensar em criar o instituto e a revista.

Era o fim dos anos 1990, quando o professor da USP Gilberto Orivaldo Chierice (1944-2019) sintetizou a fosfoetanolamina e, a partir dela, produziu e distribuiu por 20 anos um medicamento conhecido como a “pílula do câncer”. Afirmando ter encontrado a cura para a doença, ele chegou a distribuir mais de 50 mil cápsulas por mês feitas no laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Carlos.

 Embora a eficácia da droga nunca tivesse sido testada e comprovada, usuários dos comprimidos se multiplicaram. A polêmica e a hipótese de que pudesse estar certo alcançaram dimensões internacionais. “Essa história, quando posta na dimensão devida, é quase surreal”, afirma. Foram necessários anos, batalhas no Congresso e nos tribunais para que uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2016 mantivesse a proibição das pílulas determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “As pessoas propagandeavam umas com as outras, sempre tinha alguém que tinha um parente, um amigo que havia se ‘curado’ do câncer com a pílula.”

Natalia considera que a população, por não ter conhecimento, crê em substâncias e métodos de cura não validados pela ciência. É crítica dos investimentos de recursos públicos em tratamentos por meio da homeopatia, que, assinala ela, não passa pelo crivo científico.

A pesquisadora compara a divulgação de substâncias sem efeito ao que ocorre com a cloroquina e os vermífugos nitazoxanida (com o nome comercial Annita) e ivermectina no contexto da covid-19. A diferença, no entanto, está no fato de que essas substâncias começaram a ser indicadas e citadas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e isso amplia o alcance e o peso da divulgação, diz.

“Não estou combatendo o presidente porque não gosto dele ou sou de outra ideologia política. Mas, sim, porque ele está contra a ciência, e meu trabalho é defender a ciência”, afirma. “E também porque se eu seguir o que ele recomenda, vou morrer, as pessoas que eu gosto vão morrer.”



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