As comparações entre a pandemia de covid-19 e o cenário apocalíptico apresentado no livro “A Dança da Morte” levaram o próprio autor, Stephen King, a dissipar o receio da população. “Não, o coronavírus não é como o de ‘The Stand’ (nome original da obra literária). Não é, de modo algum, tão sério. É possível sobreviver a ele. Mantenham a calma e tomem as precauções cabíveis”, escreveu ele em março, em sua conta no Twitter. Ainda assim, é impossível não estabelecer paralelos entre a crise sanitária global e o extermínio da civilização narrado pelo escritor americano de 73 anos, conhecido como o “mestre do terror”. Adaptada para a minissérie “The Stand”, disponível no catálogo da plataforma Starzplay a partir de 3 de janeiro, a trama é ambientada em mundo dizimado por uma gripe mortal, onde cabe aos poucos sobreviventes determinarem as bases para uma nova sociedade, escreve Elaine Guerini em ótima resenha no Valor, publicada sexta, 18/12. Mais a seguir.
“Como editamos a minissérie enquanto a pandemia real se desenrolava, ficamos preocupados se o material não seria oportuno demais”, diz Taylor Elmore, um dos “showrunners” de “The Stand”. “Mas ainda que o início do livro explore a pandemia em si, o foco da obra cai em quem nós nos transformamos no despertar de algo assim, o que nos interessou muito mais. Além disso, a pandemia da ficção surge de um vírus militar, desenvolvido pelo governo”, diz Elmore, em entrevista por videochamada.
Na obra que King publicou em 1978, a calamidade de saúde pública é decorrente de uma arma biológica criada em laboratório pelo Departamento de Defesa dos EUA, fatal para 99% da população. Com o fim da civilização como a conhecíamos, os poucos que sobraram precisam estipular como querem reconstruí-la, escolhendo uma nova bússola moral.
É nesse cenário árido e desesperador que nasce a clássica batalha entre a luz e as trevas. Os sobreviventes são forçados a optar por um lado. Os que têm sonhos reveladores com a Mãe Abigail (Whoopi Goldberg) seguem essa senhora de 108 anos, que é a líder espiritual de uma comunidade no campo, localizada em Boulder, no Estado do Colorado. Randall Flagg (Alexander Skarsgard, vencedor de um Emmy por “Big Little Lies”), apontado como o anticristo, é quem comanda o grupo rival, na cidade do pecado, Las Vegas, onde arquiteta um plano para exterminar a humanidade - ou o que restou dela.
“King questiona o que um evento apocalíptico consegue despertar nas pessoas. Uma situação que facilmente ecoa na nossa experiência atual, ainda que ela seja menos grave que a descrita do livro”, afirma Greg Kinnear (o pai de “A Pequena Miss Sunshine”). Convencer a população mundial a usar máscara, lembra o ator, ainda é um problema. “Hoje todos nós temos momentos em que nos surpreendemos com o comportamento dos outros ao nosso redor, assim como os outros devem se surpreender com o nosso. Vivemos um momento de reavaliação e realinhamento de condutas.”
O personagem de Kinnear na minissérie é Glen Bateman, um professor de sociologia que encara a queda da civilização como mais um estudo sobre a condição humana. “O motivo que faz o livro ‘A Dança da Morte’ continuar sendo descoberto pelas novas gerações é o seu aspecto estranhamente atemporal. A dualidade do bem e do mal, o contraste entre moralidade e imoralidade e a fricção entre seguir as regras ou se rebelar contra elas”, diz
Ainda que a essência do livro tenha sido preservada na minissérie de nove episódios, sobretudo nas reflexões que instiga, “The Stand” passou por uma modernização. “Nossa ideia foi fazer uma produção tão enraizada em 2020 como o livro foi em 1978, o que implicou em fazermos ajustes tanto sociais quanto tecnológicos na história. Com isso, não pudemos evitar que os personagens no mundo de hoje tivessem smartphones e contas nas redes sociais”, diz Benjamin Cavell, que também é “showrunner” da minissérie, além de roteirista.
Durante a transposição da obra para TV, o próprio King quis fazer alterações no roteiro, mas sem buscar necessariamente atualizar o enredo. O que o autor mudou foi basicamente o fim, por não ter ficado totalmente satisfeito com a maneira como tudo acabou para os personagens principais no livro.
“O novo desfecho estava havia mais de 30 anos na cabeça de King. Ele tinha a sensação de que a história estava inacabada por Frannie Goldsmith, a heroína da obra, não ter ido confrontar Randall com os demais defensores do bem, por estar grávida de oito meses”, afirma Cavell, referindo-se à personagem interpretada por Odessa Young na produção. “Agora, a personagem vai finalmente se posicionar”, conta o “showrunner”, lembrando que, em inglês, um dos significados da palavra “stand” (no título da série) é “atitude”.
E como será que os fãs do livro reagirão à mudança no fim da trama, principalmente os mais puristas? “Espero que favoravelmente. Se nós tivéssemos mudado o desfecho, as pessoas certamente ficariam incomodadas. Mas quem mudou foi King”, diz Kinnear. “Não sou escritor, mas posso imaginar que, com o tempo, ao olhar para trás, o artista tenha uma outra visão sobre o trabalho que fez. Até um Picasso poderia talvez querer deixar a sobrancelha de uma de suas figuras mais escura ou colocar um pequeno sorriso na boca de outra”, brinca o ator.
Para Elmore, o que mais importa são as questões que a minissérie promete levantar, independentemente do desfecho. “Quando comecei a desenvolver o projeto, há três anos, com Benjamin, já o considerávamos relevante pelo simples fato de o material nos fazer perceber como é um equívoco darmos como certa a estrutura da nossa civilização. Algo como um vírus letal poderia, sim, provocar o colapso da sociedade”, diz.
De todas as interrogações que “The Stand” faz, Elmore destaca uma delas: “Se tivéssemos de reiniciar a humanidade, como quem desliga e liga de novo um computador, será que reconstruiríamos tudo do mesmo jeito?” Se o enredo já o fascinava antes da pandemia de covid-19, a nova realidade instiga Elmore a se aprofundar ainda mais nas questões - assim como ele espera que o espectador também faça.
“O que significa viver em sociedade? O que o indivíduo deve à sociedade e vice-versa? E o que nós, como cidadãos, devemos uns aos outros? O fato de estarmos nos perguntando tudo isso na vida cotidiana nos coloca em ressonância com a minissérie de uma forma que Benjamin e eu jamais poderíamos imaginar”, diz Elmore.
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