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O que mais você quer, filha, para calar a boca?

Era uma noite de festa e não faltavam motivos para comemorar. O Zorra, programa humorístico exibido nas noites de sábado pela TV Globo, estava chegando ao centésimo episódio, depois da reformulação geral que entrara em vigor em maio de 2015. O programa anterior, o Zorra Total, se ancorava num humor ultrapassado, que explorava preconceitos de gênero e sexo. A nova versão tinha uma linguagem politicamente correta, mais ágil, inteligente e contemporânea. A recepção crítica na imprensa fora boa e o público estava respondendo bem, dando ao programa picos de 20 pontos de audiência no Ibope, um índice considerado muito bom para o horário. A cabeça por trás das mudanças era Marcius Melhem, diretor, ator e roteirista que trabalhava na Globo havia catorze anos, escreve João Batista Jr. no mais polêmico texto desta semana, publicado na revista Piauí. Longo e necessário, continua a seguir. 


Naquele 5 de novembro de 2017, Melhem quis celebrar com o elenco e os roteiristas no bar Vizinha 123, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Cerca de oitenta pessoas compareceram à festa. Por volta das 22h30, um telão começou a exibir o centésimo episódio, que arrancou gargalhadas de uma plateia orgulhosa do seu trabalho. A atriz Dani Calabresa, protagonista da atração, estrelou um dos quadros mais inspirados: uma paródia da música Morena de Angola, de Chico Buarque, que ficou famosa na voz de Clara Nunes. Diante do gramado do Congresso Nacional, em Brasília, a humorista, vestida de branco e com cabelos volumosos que imitavam os da cantora, satirizava o fim dos protestos contra o governo: “Cadê a galera que andava animada batendo na panela?/Tem gente fazendo discurso e não ouço barulho na janela/Não vejo ninguém de camisa vermelha nem blusa amarela/Parece que tanta denúncia deixou todo mundo na sequela.” Calabresa foi aplaudida pelos colegas na festa.

Encerrado o programa, começou um karaokê. No discreto palco do bar, o pessoal se revezava cantando hits populares, como Evidências, sucesso com a dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó, e Menina Veneno, do cantor pop Ritchie. A certa altura, Calabresa subiu ao palco, com outros colegas da equipe, e Marcius Melhem juntou-se ao grupo e se posicionou ao lado da atriz. Cantaram uma música. Ela dançava e tentava se esquivar do contato físico com ele, tentando parecer natural. Ele forçava o contato, corpo a corpo. Quando estavam na segunda música, num lance rápido, ele puxou a cabeça da atriz em sua direção e tentou beijá-la. Ela conseguiu se desvencilhar e deixou o palco, acompanhada da atriz Débora Lamm.

A comemoração continuava animada quando Calabresa resolveu ir ao banheiro, cuja porta dá para um lavabo com espelho e não fica à vista de quem está no salão. Ao sair, a atriz deu de cara com Melhem, que estava à sua espera e tentou agarrá-la. Ela reagiu, bateu com a parte traseira da própria cabeça na parede e pediu que Melhem a deixasse passar. Em vão. Com uma das mãos, ele imobilizou os braços da atriz. Com a outra, puxou a cabeça dela para forçar um beijo. Assustada, Calabresa cerrou os lábios e virou o pescoço, mas Melhem conseguiu lamber o rosto dela. Em seguida, tirou o pênis para fora da calça. Enquanto a atriz tentava soltar os braços e escapar da situação, acabou encostando mão e quadris no pênis de Melhem. Ao reencontrar os colegas no salão, Calabresa teve uma crise de choro. Os atores Luis Miranda e George Sauma ofereceram a ela um copo d’água e confortaram a amiga.

Na terça-feira, três dias depois do assédio no bar em Botafogo, Calabresa estava ensaiando um novo episódio do Zorra no Projac, o antigo nome dos Estúdios Globo no bairro de Jacarepaguá. Ela contracenava com Maria Clara Gueiros. De repente, as duas atrizes foram surpreendidas pela chegada de Melhem, que não tinha o hábito de aparecer nos estúdios. Seu expediente diário como diretor acontecia quase sempre na casa onde se concentram os redatores dos programas humorísticos, apelidada de Hahahouse ou Kkkkasa, situada no Jardim Botânico, a mais de 30 km do Projac.

Melhem falou do assédio de sábado como se estivesse fazendo uma cena de humor, com os braços abertos. “Para, para, para”, começou. “Eu não tenho culpa do que aconteceu! Quem mandou você estar muito gostosa?” E caminhou em direção a Calabresa. Ela se levantou, tentando evitar qualquer contato físico e, para se esquivar dele, começou a andar em volta de uma mesa que fazia parte do cenário. Maria Clara Gueiros pediu para o chefe deixar a colega em paz. Calabresa também reagiu: “Não quero seu abraço nem suas desculpas, você já me agarrou, lambeu minha cara e encostou o pau em mim.” Melhem seguiu falando que ela era a responsável pelo comportamento dele: “Você tá muito gostosa.”

As duas cenas – no bar Vizinha 123 e no ensaio no Projac – tiveram testemunhas. “Era visível que a Dani deixou o palco do karaokê incomodada com o Marcius”, diz um dos convidados da festa de sábado. O ator Luis Miranda lembra que, enquanto consolava Calabresa, a colega lhe contou que tinha encostado acidentalmente no pênis de Melhem. “Ela me falou o que tinha acontecido na saída do banheiro”, disse ele. “Não sei dizer se o Marcius ia pedir desculpas, mas a Dani ficou evitando ele em volta da mesa, enquanto ele a chamava de gostosa”, diz uma das pessoas que estavam na sala de ensaio no Projac.

Para esta reportagem, a piauí ouviu 43 pessoas, em conversas presenciais, virtuais ou por meio da troca de mensagens de texto ou áudio. Entre elas, duas vítimas de assédio sexual de Marcius Melhem, sete vítimas de assédio moral e três vítimas dos dois tipos de assédio, o sexual e o moral. Algumas das mais de quatro dezenas de pessoas conversaram com a revista sem pedir anonimato, mas a maioria só deu entrevista com a condição de que seus nomes não fossem revelados. Os motivos são diversos: evitar atritos com a Globo, prejuízos às suas carreiras profissionais ou mesmo ações judiciais. No caso das vítimas de assédio sexual, em particular, a razão mais frequente para manter o anonimato é a ojeriza que sentem de reviver, agora publicamente, a dor e o constrangimento pelos quais passaram.

Dani Calabresa já enfrentara ataques menos violentos do seu chefe. Em julho de 2017, por exemplo, ela estava em seu camarim no Projac, arrumando-se para uma cena em que faria uma salva-vidas voluptuosa, numa sátira inspirada no seriado Baywatch, exibido no Brasil nos anos 1990 com o nome de SOS Malibu. De repente, a atriz escutou alguém bater à porta do camarim. Como a direção do programa distribui uma escala precisa de gravações, com a indicação dos textos e figurinos, todos sabiam que a cena da salva-vidas gostosona seria gravada naquele momento e que a personagem usaria apenas um maiô vermelho, à la Pamela Anderson, protagonista da série norte-americana. Vestindo um roupão, Calabresa abriu a porta do camarim. Era Marcius Melhem. Ele entrou e, em tom de brincadeira, disse que viera dar uma “conferida” no figurino. Constrangida, a atriz sorriu amarelo e não tirou o roupão.

As experiências de assédio foram antecedidas e sucedidas por armadilhas profissionais. Em dezembro de 2015, quando veio a público que o ator e diretor Miguel Falabella pretendia incluir Calabresa no elenco do seu novo programa dominical, Melhem barrou o convite, segundo o próprio Falabella. Melhem abordou a atriz e disse: “Eu trouxe você para a Globo, eu te protejo aqui dentro da emissora e você vai me trair?” O boicote profissional mais sério, no entanto, ocorreu em 2019. Desde que fora contratada pela Globo em 2015, Calabresa insistia em lançar na emissora um programa inspirado no Furo MTV, sucesso que ela criara e apresentava com Bento Ribeiro na MTV. Melhem gostava do projeto, mas as coisas nunca saíam do papel. Ele dizia a Calabresa que tivesse paciência, que uma hora o programa deslancharia.

Em março de 2019, Calabresa reuniu-se com Melhem e Daniela Ocampo, braço direito do humorista, para pedir autorização para oferecer aos canais GNT ou Multishow o programa inspirado no Furo MTV. Melhem reafirmou que a atração seria exibida na própria Globo e, duas semanas depois, marcou a primeira leitura do roteiro da versão global, que seria batizada de Fora de Hora e viria a estrear em 21 de janeiro de 2020. A reunião inicial foi marcada para as nove da noite, no apartamento de Melhem, em Copacabana. Abalada com os assédios, mas com a esperança de apresentar e assinar o programa inspirado em sua criação, Calabresa foi à reunião cheia de expectativa. Tomou a precaução de chegar mais tarde, por volta das 22h30, quando outros convidados já estariam por lá, para não correr o risco de ficar a sós com o chefe. Ao chegar, encontrou cerca de quinze pessoas, entre atores e roteiristas.

Quando o debate começou, Melhem e Ocampo anunciaram que o Fora de Hora seria apresentado apenas por Calabresa, sem a companhia do humorista Bento Ribeiro. A atriz ficou espantada. Nas conversas preliminares, fora combinado que seu colega dividiria a bancada. Calabresa questionou a ausência de Ribeiro, mas Melhem e Ocampo se mantiveram irredutíveis. “Ela se sentiu traída. Teve uma crise de choro e discutiu com os chefes”, diz uma testemunha da reunião. Com as mãos tremendo e o rímel borrado, chamou um Uber e foi embora. Sem a presença do colega e sem a sua própria identidade artística, Calabresa achava que o programa seria um plágio, e resolveu não fazê-lo.

A combinação de desentendimentos profissionais e assédio sexual acabou tirando a atriz do prumo. “Vi minha amiga sem forças para viver”, diz um apresentador de tevê que está entre os amigos mais próximos da atriz. “Ela não queria levantar do sofá, não queria receber ninguém.” Calabresa passou a ter ânsia de vômito quando pegava o avião de São Paulo, onde mora, para o Rio de Janeiro, onde gravava. Seu coração disparava quando tomava o táxi no Aeroporto Santos Dumont em direção aos estúdios da Globo. “Ela me disse que sentia suor nas mãos e a boca seca quando cruzava a catraca da empresa”, disse uma atriz a quem Calabresa confidenciou algumas de suas experiências. Ela tinha receio de ser boicotada no trabalho e vivia tensa com a possibilidade de se encontrar com Melhem. Quando se cruzavam, ele quase sempre a chamava de “gostosa”, apertava a cintura dela, afagava o cabelo e dizia frases como “Sonhei com você outra vez, hein!”.

Exausta, Calabresa resolveu deixar o elenco do Zorra. Em uma reunião na Hahahouse com Melhem e Ocampo, em outubro do ano passado, os chefes quiseram saber o motivo de sua decisão. Calabresa limitou-se a dizer que havia se sentido desrespeitada com a proposta do programa Fora de Hora, que ela considerava um plágio. A certa altura, começou a chorar. Ocampo lhe recomendou que fizesse terapia e viajasse para o exterior para relaxar. Calabresa acertou sua saída do Zorra, mas, segundo reconstituição feita pela piauí, nada se falou sobre assédio sexual.

Calabresa então cogitou deixar a Globo, onde sempre sonhara trabalhar. Mas recebeu um convite que voltou a animá-la. A produtora de elenco Daniela Ciminelli pediu que ela reservasse o período de 6 a 12 de dezembro para gravar A Gente Riu Assim, uma retrospectiva de humor do ano de 2019. Calabresa seria a apresentadora do especial, como acontecera no ano anterior, quando dividiu o comando da atração com o humorista Marcelo Adnet, já naquela época seu ex-marido. Dias depois, no entanto, Ciminelli ligou avisando que a atriz estava dispensada. Seu nome não constava mais do elenco. A Gente Riu Assim foi ao ar em 23 de dezembro. Adnet apresentou o programa sozinho.

Calabresa viajou para os Estados Unidos na segunda semana de dezembro. Passou pela Disney, na Flórida, e seguiu para Nova York. “Nessa época, ela me contou que estava tomando ansiolíticos para dormir”, disse um outro amigo íntimo, que já trabalhou com televisão mas hoje está em outra área. Para animar seu espírito, a atriz assistiu a dois musicais da Broadway numa única tarde, Wicked e Waitress. Naquele dia, postou a seguinte frase na sua conta do Instagram: Don’t be afraid of anyone (Não tenha medo de ninguém). Em menos de cinco minutos, Melhem mandou uma mensagem privada perguntando se a frase era uma indireta. Calabresa respondeu que só falaria com ele na presença de Monica Albuquerque. A resposta não deixava dúvidas: Monica Albuquerque é a chefe do Desenvolvimento e Acompanhamento Artístico (DAA), ao qual os artistas recorrem para apresentar suas queixas.*

No dia 22 de dezembro, ainda em Nova York, Calabresa tomou uma decisão corajosa: telefonou para Albuquerque. Na conversa, contou sobre as desavenças profissionais, a sensação de estar sendo ludibriada e, finalmente, falou do assédio sexual e moral que vinha sofrendo. Na ocasião, soube que o próprio Melhem procurara Albuquerque para dizer que Calabresa “anda estranha”. Segundo interlocutores da atriz, ela então deu alguns exemplos da violência que vinha enfrentando. Contou que seu chefe pegava em sua cintura, que a chamava de “gostosa” e afagava seu cabelo, mas observou que havia coisas mais graves para relatar. Avisou, também, que tinha testemunhas. Marcaram uma reunião presencial para 2 de janeiro, quando Calabresa já estaria de volta ao Brasil.

A partir de então, a Globo não conseguiria mais manter o caso no limite de seus domínios.

Um dia depois do Natal, o colunista Leo Dias, que então trabalhava no UOL, apurou que algo estava ocorrendo nos bastidores e publicou a seguinte nota: “Marcius Melhem, coordenador do Departamento de Humor da TV Globo, está sendo denunciado por assédio moral por uma série de atrizes do núcleo de humor da emissora.” Em seguida, identificou três denunciantes: as atrizes Dani Calabresa, Maria Clara Gueiros e Renata Castro. No mesmo dia, o jornalista corrigiu a nota, excluindo o nome de Castro. No Instagram, Gueiros, que estava em Paris, desmentiu a informação, mas o jornalista manteve o nome. Em outra imprecisão, a nota dizia que a denúncia fora apenas de “assédio moral”, quando também incluía “assédio sexual”. A notícia, no entanto, foi o primeiro alerta público de que havia algo tóxico acontecendo no Departamento de Humor da Globo.

No dia 2 de janeiro deste ano, como estava combinado, Calabresa se reuniu com Monica Albuquerque e seu braço direito no DAA, Jazette Guedes. As duas estão no topo da hierarquia da emissora, pois coordenam tudo que envolve a dramaturgia de uma das maiores fábricas de telenovelas do mundo. Têm poder de escalar, contratar e demitir atores, diretores, figurinistas e quaisquer outros profissionais. Por orientação da Globo, elas não deram entrevista à piauí. A conversa entre as duas funcionárias e Calabresa, que a revista reconstituiu, durou mais de quatro horas. Calabresa contou tudo o que vinha enfrentando e mostrou as mensagens trocadas com Melhem no Instagram e WhastApp para comprovar o comportamento inadequado do chefe.

Calabresa saiu do encontro com motivos para ficar esperançosa. Ouviu a promessa de que o DAA ia acionar os responsáveis na emissora pelo programa de compliance, que zela pela aplicação das normas éticas e de conduta que orientam a empresa. Ao receber uma denúncia, seja qual for, cabe ao programa de compliance investigar e sugerir uma solução, que pode ser desde o arquivamento do caso, se nada de irregular for constatado, até a demissão do acusado.

Quase três semanas depois do depoimento de Calabresa, em 20 de janeiro, Jazette Guedes procurou a atriz para informar que falara com Melhem a respeito das acusações. Contou que o diretor chegou a chorar durante a conversa. Guedes disse então que sugeriu a ele fazer terapia. Ao ouvir o relato, Calabresa ficou decepcionada, contaram cinco pessoas ouvidas pela reportagem. A atriz respondeu que indicar “terapia” a um homem que pratica assédio sexual era como dar a ele um presente. Para justificar sua sugestão, Guedes disse: “Mas existe apenas o seu caso.”

De fato, até aquele momento, a denúncia de Calabresa era mesmo a única acusação formal contra o humorista. Sentindo-se desamparada, a atriz pediu a Guedes que providenciasse uma conversa pessoal com Carlos Henrique Schroder, o nome mais graduado da emissora na área de entretenimento, esporte e jornalismo. Calabresa temia que sua acusação não prosperasse e pretendia levá-la aos mais altos escalões da Globo. A reunião foi agendada para a semana seguinte.

A conversa com Schroder durou três horas. Calabresa relatou os episódios de assédio, criticou a solução de recomendar terapia ao humorista e fez questão de avisar que não era a única vítima de Melhem. Sentiu-se acolhida pelo interlocutor. Conforme apurou a piauí, Schroder concordou que “pedir para fazer terapia” era “inadmissível” e desculpou-se: “Eu sinto muito por tudo o que você passou.” Enquanto a atriz ainda estava em seu escritório, ele pegou o telefone e mandou que a investigação do caso prosseguisse. Uma semana depois, Calabresa estava diante dos responsáveis pelo compliance da Globo, em São Paulo. Falou por cinco horas.

Como Melhem estava sob suspeita pública desde a divulgação da nota do jornalista Leo Dias, mas continuava exercendo cargo de chefia, o clima na Hahahouse foi ficando cada vez mais pesado. Ocampo, a número 2 do humor, mobilizou a equipe para que todos assinassem uma carta de apoio ao chefe. Primeiro, em um grupo de WhatsApp, identificado como Zorra Redação, pediu a um jovem redator do programa que recolhesse assinaturas dos colegas. Em outro grupo de WhatsApp, chamado apenas de Zorra, Ocampo mandou uma mensagem, à qual a revista teve acesso: “Galera, quem tiver assinado o documento, me manda o número da matrícula para eu pôr ao lado? Pode me mandar em privado se preferirem.” Cinquenta e cinco pessoas assinaram.

A carta de apoio, divulgada no início de fevereiro, referia-se à nota de Leo Dias. O texto garantia que “o nosso colega Marcius Melhem em tempo algum praticou assédio moral com qualquer um de nós” e afirmava que a relação de trabalho entre todos era “baseada no diálogo, profissionalismo e respeito”. Concluía oferecendo “toda solidariedade a Marcius Melhem diante dessa maldade, que não vai destruir a harmonia entre nós, nem o prazer de trabalhar neste projeto que nos orgulha tanto.” Era uma clara derrota para Calabresa.

Ocampo não chegou a afirmar que se arrepende do que fez, mas, procurada pela piauí, admitiu: “Eu agi de acordo com o que eu acreditava na época e hoje sei que tinha uma visão parcial do que estava acontecendo.” Depois de dizer que não gostaria de dar entrevista para apresentar detalhes, fez questão de acrescentar: “O que eu posso dizer é que eu acredito nas mulheres e, como uma, estou ao lado das vítimas e sempre estarei.”

Com a carta de apoio público, Melhem ficou fortalecido. “Ele começou a se movimentar dentro da redação”, disse um integrante da equipe de humor. “Queria solapar a credibilidade da Dani. Dizia que ela era louca.” Melhem sugeriu, inclusive, que Calabresa fosse denunciada ao compliance pela acusação infundada de plágio. A piauí teve acesso a uma gravação na qual o diretor diz que Calabresa estava manchando o nome da Globo. Em outra gravação, à qual a revista também teve acesso, ele se mostra irritado com a atitude de Calabresa e fala que ela já tinha se dado bem. “Ainda ganha um quadro no Se Joga [humorístico que saiu do ar em março] e um programa no GNT”, diz ele. Em seguida, expressando-se como se sua interlocutora fosse Calabresa, ele pergunta: “O que mais você quer, filha, para calar a boca?” Naquele mês de fevereiro, a Globo renovou o contrato de Calabresa por mais três anos. A atriz ganhou um aumento de salário significativo.

A coragem de Calabresa acabou motivando outras mulheres. No curso da investigação contra Melhem, novas denúncias começaram a surgir. Mais cinco mulheres, pelo menos, compareceram ao compliance da Globo e denunciaram Melhem por assédio sexual. Três delas falaram do incômodo de contracenar com ele, que costumava encostar-se nelas roçando o pênis ereto. “Ele fazia isso até quando me encontrava nos corredores. Sempre em tom de brincadeira, como se o lugar fosse apertado demais e fosse impossível não encostar em mim”, relatou uma delas. Em conversas com a reportagem, outra atriz contou que Melhem a visitou no apartamento, para onde ela acabara de se mudar, quis conhecer seu quarto e, ao chegar ali, expôs sua genitália. Outra relatou que ele apareceu de surpresa em sua casa, dizendo que, ao passar casualmente pela região, resolveu visitá-la. Enquanto conversavam sobre a carreira dela na tevê, ele tentou agarrá-la.

“Há vários paralelos entre Harvey Weinstein e Marcius Melhem”, diz a advogada Mayra Cotta, que trabalha em favor das vítimas do humorista. Weinstein era um megaprodutor de Hollywood que, denunciado por várias atrizes, hoje cumpre 23 anos de prisão por assédio sexual. Cotta continua a comparação: “Ambos são homens que instrumentalizam sua posição de poder hierárquico dentro de uma grande empresa para assediar sexualmente as mulheres cujas carreiras dependem deles. Ambos trataram o seu trabalho como um faroeste sem lei no qual todas as mulheres estavam disponíveis para eles.”

No dia 6 de março, a Globo emitiu um comunicado informando que, “por motivos pessoais”, Melhem estava deixando a liderança dos projetos humorísticos da emissora. Depois de informar sobre outras movimentações internas na empresa, o comunicado terminava assim: “Marcius solicitou, ainda, licença das funções de roteirista e ator por um período de quatro meses.” De fato, Melhem tinha um compromisso pessoal. Uma de suas filhas, hoje com 11 anos, faria uma cirurgia nos Estados Unidos. Na nota, nenhuma palavra sobre assédio sexual ou moral.

Se a intenção da Globo era aliviar a pressão com o anúncio, o efeito foi o contrário. Os envolvidos – as denunciantes, as testemunhas e os colegas que sabiam do caso – contam que ficaram decepcionados. As vítimas do assédio esperavam receber um relatório do compliance, ou qualquer outro tipo de satisfação, e tinham a expectativa de que Melhem fosse demitido sem meias-palavras. Nada disso aconteceu. Elas aguardaram uma semana, mas não tiveram nenhum retorno. Esperaram mais um mês, e nada. Depois outro mês, e nada novamente. O desconforto foi aumentando. A dor do que enfrentaram e a confiança que depositaram na Globo pareciam ter sido inúteis. Até que, no final de julho, tomaram uma atitude.

Um grupo de treze pessoas – seis vítimas de assédio sexual e sete testemunhas, entre as quais alguns homens – procurou a advogada Mayra Cotta. Queriam receber orientação jurídica, traçar um plano de como proceder com a empresa. Não queriam judicializar o assunto, mas sentiam-se negligenciadas. Com a ativista Manoela Miklos, uma referência para as mulheres em casos de assédio, Cotta acabou criando a Bastet, uma consultoria especializada em compliance de gênero que passou a assistir as vítimas de Melhem. No dia 14 de agosto, enquanto Cotta e Miklos ainda se familiarizavam com os detalhes do caso, a Globo divulgou outra nota, desta vez anunciando a saída definitiva de Melhem:

A Globo e Marcius Melhem, em comum acordo, encerraram a parceria de 17 anos de sucessos. O artista, que deu importante contribuição para a renovação do humor nas diversas plataformas da empresa, estava de licença desde março para acompanhar o tratamento de saúde de sua filha no exterior. Como todos sabem, a Globo tem tomado uma série de iniciativas para se preparar para os desafios do futuro e, com isso, adotado novas dinâmicas de parceria com atores e criadores em suas múltiplas plataformas. Os conteúdos de humor, assim como os de dramaturgia diária e semanal, continuam sob a liderança de Silvio de Abreu, diretor de Dramaturgia da Globo.

De novo, nenhuma palavra sobre o assédio. De novo, as vítimas se sentiram frustradas. A nota informava que a saída de Melhem fazia parte de uma reestruturação da emissora, ocorrera “em comum acordo” e silenciava sobre as denúncias e a investigação interna. Mais de dez testemunhas relataram à reportagem que o clima no núcleo de humor ficou insustentável. “Alguns começaram a interpretar a nota como um sinal de tolerância da Globo com a prática do assédio”, diz um ator que não trabalhava diretamente com Melhem, mas acompanhou o crescente incômodo dentro da emissora. Um grupo, formado por mulheres e homens, decidiu então escrever uma carta para Carlos Henrique Schroder, o mandachuva de conteúdo da Globo, cobrando uma posição clara da empresa. O primeiro esboço da carta foi feito no mesmo dia da divulgação da nota. O texto era enfático:

Caro sr. Carlos Henrique Schroder,

Diante dos acontecimentos desta sexta-feira, 14 de agosto de 2020, quando a Globo emitiu comunicado oficial sobre a saída de Marcius Melhem da empresa, nós decidimos escrever esta carta. Nossa intenção é comunicar ao senhor, com a urgência que o assunto merece, nossa profunda insatisfação e indignação com a solução dada ao caso que envolve diversas denúncias de assédio sexual e moral contra Marcius Melhem.

O que muitos funcionários da TV Globo passaram durante a gestão de Marcius Melhem como chefe do Departamento de Humor deixou danos imensuráveis. A empresa tem hoje em seus quadros empregados – entre técnicos, câmeras, diretores, autores e atores, em sua maioria mulheres – sofrendo transtornos psicológicos, boa parte deles passando por tratamento médico, tentando se recuperar dos traumas. São vítimas de um ambiente de trabalho tóxico e perverso, no qual o simples ato de passar o crachá na catraca da portaria desencadeia medo, crises de ansiedade e de pânico.

É do nosso interesse proteger a imagem da emissora como a empresa correta e idônea que a TV Globo se propõe a ser. Nós acreditamos na sua intenção de promover um ambiente de trabalho que não tolera nenhum tipo de violência ou de assédio. Estávamos otimistas ao observar que passos largos foram dados na direção da resolução de casos de assédio moral e sexual dentro da emissora, especialmente por meio do sistema de compliance, que foi utilizado para a investigação das denúncias contra Marcius Melhem. Avaliamos que o seu afastamento foi uma decisão necessária e acertada.

Acreditamos, contudo, que a forma como a saída de Marcius Melhem foi formalmente comunicada ao público é não apenas ofensiva a todas as suas vítimas, mas também um lamentável recuo diante dos tempos em que vivemos. Os funcionários vítimas de violência desse caso têm sido submetidos nos últimos meses a ainda mais violência com o silenciamento oficial que vem sendo praticado, definitivamente sedimentado na tarde desta sexta-feira. Ressaltamos que em nenhum momento nos foi informado oficialmente qual foi o desfecho do caso. Não entendemos o silêncio da empresa nos meses subsequentes à investigação e agora entendemos menos ainda a defesa pública de Marcius Melhem […]. O comportamento de Marcius Melhem consistia em abusar da sua posição de chefe para constranger suas funcionárias sexualmente e para expor seus funcionários a situações humilhantes e degradantes.[…] Não é admissível, tendo em vista a qualidade dos envolvidos e a magnitude das denúncias, que este caso seja resolvido silenciosa e nebulosamente […].

O texto não foi enviado. Nem todos do grupo concordavam com uma carta tão assertiva, com tom de cobrança tão peremptório. Uma outra versão, mais curta e mais branda, acabou sendo enviada três dias depois, em 17 de agosto. Não mencionava o nome de Melhem. Começava anunciando que a carta era motivada pelos “recentes acontecimentos no núcleo de humor”, dizia que a intenção era “criar um ambiente de trabalho saudável, transparente e digno para todas e todos” e informava que “muitos sofrem diariamente e precisam de apoio para debater junto à empresa novas medidas e mecanismos que garantam um ambiente de trabalho onde haja respeito e segurança”. Por fim, pedia uma reunião com Schroder. “Devido à urgência do assunto que afeta a todos nós, vítimas e apoiadores que assinam essa carta, gostaríamos de propor uma reunião com representantes desse grupo o quanto antes, se possível ainda esta semana (17 a 22 de agosto).”

O e-mail foi remetido pela conta do humorista Marcelo Adnet, ex-marido de Calabresa, com cópia para a advogada Mayra Cotta. Estava assinado por trinta atores, roteiristas e diretores. As mulheres pediram para não ter seus nomes citados. No total, havia também nove homens: Antonio Prata, Eduardo Sterblitch, João Gomez, João Vicente de Castro, Maurício Farias, Mauro Farias, Matheus Malafaia, Vicente Barcellos e o próprio Adnet. Schroder respondeu para Adnet, sem cópia para a advogada. Disse que o DAA se reuniria com os denunciantes.

No mesmo dia, Adnet foi entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura. Indagado sobre o caso, deu uma resposta ambígua: “Eu acho uma coisa inadmissível. Eu fui abusado duas vezes e sei como as vítimas sofrem. Portanto, não tenho poder de polícia, porque minha opinião é da dúvida. Quando nos apressamos em dar uma opinião, condenatória ou não, estamos sendo levianos.”

Adnet estava solidário com sua ex-mulher e participava do grupo que cobrava medidas mais firmes da Globo. Horas antes de o Roda Viva ir ao ar, no entanto, ele teve uma reunião com advogados da emissora e recebeu orientação sobre o que dizer caso o tema viesse à tona. Foi massacrado nas redes sociais, que o chamaram de “esquerdomacho” e reclamaram que, em caso de abusos sexuais, a palavra da mulher é sempre colocada em dúvida. Indagado sobre sua declaração e a orientação que recebeu da Globo, Adnet preferiu dar uma resposta geral. “Há que se entender o seguinte. Não posso sair falando o que as vítimas me contaram em segredo. Devo a elas a discrição que me pediram, para que elas não sejam expostas.”

“Não posso falar sobre casos concretos”, disse Schroder, que deixará seu cargo na Globo no ano que vem, em e-mail enviado à piauí. Sobre as denúncias de assédio em geral, ele disse: “Esse assunto é encarado de forma tão responsável pela Globo que, em certos momentos, eu cheguei a acompanhar algumas questões de compliance.” Também frisou: “Faço questão de reiterar que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A empresa não tolera comportamentos abusivos em nossas equipes.” Encerrou dizendo que “os temas da matéria [informados pela revista no pedido de entrevista] não receberam tratamento diferente, embora eu não tenha conhecimento de muitos fatos mencionados”.

Depois da resposta de Schroder para Adnet, a chefe do DAA, Monica Albuquerque, informou que ele não tinha espaço na agenda para receber os signatários da carta, mas ela estava à disposição de todos. Enviou seu número de celular e propôs conversas individuais, mas o grupo insistiu numa conversa coletiva. Albuquerque concordou, desde que a advogada Mayra Cotta não estivesse presente. Ocorreram então duas reuniões pelo aplicativo Zoom.

Na primeira, estavam pelo menos sete signatários, entre eles dois homens. A principal demanda – receber um relatório com o resultado da investigação interna – não foi atendida. Testemunhas relataram que Albuquerque disse que o compliance não distribuiria um relatório final para proteger as partes envolvidas, denunciantes e denunciado. A certa altura, ela levantou a possibilidade de a Globo pagar por tratamento psiquiátrico das mulheres que estivessem fazendo terapia e tomando remédios, o que não aconteceu. Para encerrar, pediu a todos que separassem questões de trabalho e as “festinhas”, numa alusão à comemoração do episódio 100 do Zorra. Ninguém gostou do conselho. Afinal, se a festa era da empresa e o convite tinha vindo do próprio diretor do Zorra, a culpa agora era de quem aceitara o convite?

Na segunda conversa, à qual compareceram pelo menos seis mulheres e dois homens, os quais já haviam participado da reunião anterior, a nova diretora do compliance da Globo, Carolina Bueno Junqueira, também esteve presente. Ela assumira o cargo havia quatro meses. Vinha da Ambev, fabricante de cervejas e refrigerantes, onde foi chefe das auditorias na América do Sul. Bueno Junqueira ainda estava se ambientando na Globo e reiterou que não haveria divulgação de resultado do trabalho do compliance.

Com a insistência da emissora em manter o assunto sob discrição máxima, o grupo tomou uma decisão: escalar a advogada Mayra Cotta para falar sobre o caso, poupando o nome das vítimas. A entrevista, concedida à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, foi publicada no dia 24 de outubro. A introdução do texto dizia assim: “Um mistério ronda os corredores do Departamento de Humor da TV Globo desde agosto. Por que Marcius Melhem, até então poderoso diretor do núcleo, foi desligado da emissora naquele mês sem qualquer explicação?”

No corpo da entrevista, Cotta contou que representava “seis vítimas de assédio sexual e seis testemunhas” e disse que o grupo enviara à direção da Globo uma carta para manifestar descontentamento com a postura da empresa. A advogada não deu detalhes, nem mencionou o conteúdo da carta, mas se referia àquele e-mail remetido para Schroder um mês antes.

Cotta falou sobre o modo de agir de Melhem. “Foi um chefe que atuou de forma muito violenta com várias atrizes.” E detalhou: “Houve um comportamento recorrente, de trancar mulheres em espaços e tentar agarrá-las, contra a vontade delas. De insistir e ficar mandando mensagem inclusive de teor sexual para mulheres que ele decidia se iam ser escaladas ou não para trabalhar, se ia ter cena ou não para elas. De prejudicar as carreiras de mulheres que o rejeitaram. De ficar obcecado, perseguindo mesmo. Foi um constrangimento sistemático e insistente.”

No mesmo dia, Melhem publicou um longo texto em sua conta no Twitter. Começava dizendo que afirmar “sou inocente” ou “vou provar na Justiça” equivalia a repetir o bordão de todos os acusados e soaria falso. “Mas preciso falar e com o tempo mostrar minha sinceridade no que vou dizer aqui. Estou disposto a reconhecer meus erros, pedir desculpas e, se possível, reparar pessoas que eu tenha de qualquer forma magoado. Quero enfrentar isso com verdade e humanidade e me expor se for preciso.” Depois de dizer-se orgulhoso da mudança que imprimiu nos programas humorísticos da Globo, usando “o humor como um instrumento contra o preconceito”, admitiu: “Mesmo abraçando profissionalmente a causa feminista, ainda combato o machismo dentro de mim, erro, posso ter relações que magoem. Tento melhorar e aprender.” E terminou seu raciocínio com o principal: “E queria muito falar sobre isso. Mas diante de acusações tão graves que de forma alguma cometi, o que eu posso fazer? Negar.”

Disse que, até então, tinha ficado calado “porque as acusações não apareceram aqui fora. No compliance da Rede Globo tudo foi apurado e investigado rigorosamente. Saí pela porta da frente da emissora em que trabalhei por dezessete anos. Sei que, num caso desses, ainda mais no momento que vivemos, de tanto ódio, serei culpado até provar o contrário. Então, quero que tudo seja colocado às claras, expor a minha inocência e os meus erros. Quero poder pedir desculpas e cobrar responsabilidades. Vou em busca da verdade.”

A entrevista de Cotta na Folha levou o humorista Marcelo Adnet a se manifestar publicamente. Em sua conta no Twitter, ele declarou “toda solidariedade às vítimas”. Em privado, foi além. Em um grupo de WhatsApp, chamado Coalas, que reúne artistas e famosos, como Fernanda Lima, Patricia Pillar e Gregorio Duvivier, Adnet desabafou: “O que esse sujeito [Melhem] me boicotou, falou mal de mim, me deu apelidos…”  Cotta também foi procurada por outras quatro vítimas, além das seis que já representava. Eram três atrizes e uma mulher da equipe técnica. Todas relataram casos em que sofreram assédio sexual por parte de Melhem.

Procurado pela piauí, Melhem refletiu durante alguns dias e, por fim, decidiu que não daria entrevista. Em vez disso, mandou uma nota, que pediu para ser publicada na íntegra. Diz o seguinte:

Quando recebi as perguntas da revista piauí, percebi que a sentença já estava dada. Então, nada que eu diga sobre fatos distorcidos ou cenas que jamais ocorreram vai mudar esse perfil construído de abusador, quase psicopata.

Qualquer pessoa que tenha convivido comigo sabe que eu jamais cometeria algum ato de violência e que nunca forcei ninguém a nada. Mas parece que o único objetivo está sendo bem-sucedido: a minha condenação na opinião pública.

Quero pedir desculpas a pessoas que eu magoei, mas sequer tive o direito de saber quem são elas. O mundo mudou, comportamentos antes naturais estão sendo revistos, e todos precisamos aceitar as consequências de nossos excessos.

Venho há um ano trabalhando esse entendimento e estou disposto a assumir qualquer erro ou dano que tenha causado. Mas é preciso que a conversa seja transparente, sem omissões, mentiras ou distorções sobre as relações. É o que eu vou buscar: justiça.

Na tarde de 19 de novembro passado, Jorge Nóbrega, presidente executivo da Globo, recebeu a piauí para uma conversa virtual que durou uma hora. Estava acompanhado de Andrea Doti, a diretora de comunicação, e Carolina Bueno Junqueira, a diretora do compliance da empresa. Antes da entrevista, eles já haviam avisado que não poderiam comentar nenhum caso específico – como o de Marcius Melhem – por razões de confidencialidade e sigilo. Mas Nóbrega não se furtou a fazer uma autocrítica sobre a forma como a Globo tem encaminhado as questões de assédio sexual – que, no geral, respondem por menos de 1% das reclamações internas.

“Estamos estudando a possibilidade de dar retornos da melhor maneira”, disse ele, referindo-se a vítimas de assédio que reivindicam tomar conhecimento do resultado das investigações, mas sem falar do caso particular de Melhem. “De dar retornos mais empáticos, de criar um mecanismo de aconselhamento para as pessoas que foram impactadas negativamente. Precisamos de um fechamento melhor”, admitiu. “Sabemos que esses processos precisam melhorar. Queremos ser justos. Queremos que nossas ações sirvam para a correção de problemas.”

Bueno Junqueira, especialista no assunto, disse que a comunicação sobre o resultado de casos de assédio sexual é um desafio. Primeiro, porque é preciso respeitar o sigilo. Segundo, porque nem todas as vítimas querem que o caso venha a público. Mas, indagada se a Globo, em eventuais casos futuros, pretende encontrar um meio de informar claramente as razões de demissão de um assediador, disse: “O caminho é esse, a direção é essa.”

Para ilustrar a seriedade com que a Globo tem enfrentado esses casos, Nóbrega disse que a empresa criou a área dedicada a compliance em 2015 e, desde então, é cada vez maior o número de funcionários que se identificam quando fazem alguma denúncia, num sinal de que confiam nos bons propósitos da emissora. Além disso, salientou Bueno Junqueira, a Globo publica os dados gerais do trabalho de compliance, uma prática de transparência que nem todas as empresas adotam. Nos dados gerais, fica-se sabendo que, de abril de 2015 até 31 de dezembro de 2019, a Globo ouviu 3 686 relatos e, em 33% dos casos, os denunciantes se identificaram.

No último dia de março de 2017, um dos atores mais conhecidos do plantel da Globo começou a cair. Uma figurinista da emissora, Susllem Tonani, descreveu em detalhes como o ator José Mayer a assediou sexualmente durante a novela A Lei do Amor. O relato saiu no blog Agora É Que São Elas, da Folha de S.Paulo, e serviu de estopim para um movimento das atrizes da Globo, cujo mote era “Mexeu com uma, mexeu com todas – chega de assédio”. No mesmo ano, surgiu nos Estados Unidos o #MeToo, o movimento de denúncia de assédio sexual que ganhou a adesão de atrizes norte-americanas e acabou resultando na prisão de Harvey Weinstein.

O caso de José Mayer ganhou dimensão nacional, resultou em demissão do ator e chegou a ser assunto de uma reportagem do Jornal Nacional. Tonani, no entanto, denunciara o assédio do ator ao setor de recursos humanos e à ouvidoria da Globo um mês antes. Até que ela trouxesse a público o que sofrera, a emissora não tinha tomado nenhuma medida contra o ator, deixando a impressão de que, se fosse possível, permaneceria em silêncio sobre o caso. Com a divulgação na imprensa, a razão do afastamento – e, depois, da demissão – de José Mayer acabou sendo publicamente informada pela Globo.

É o que as vítimas de Melhem querem agora. “Gestores em empresas e organizações precisam entender que um chefe assediador deixa para trás uma verdadeira terra arrasada”, diz a advogada Mayra Cotta. “Acreditamos que ainda há duas dimensões dos avanços que precisam acontecer: reparação e responsabilização. Estamos acompanhando o tanto que as empresas em geral ainda estão errando na forma como lidam com casos de assédio sexual. Demitir o abusador e fingir que nada aconteceu não adianta.”

Em outubro de 2018, apenas um ano e meio depois do afastamento de José Mayer, Melhem convidou os roteiristas dos programas de humor da Globo para uma festa em sua casa, em Mauá, no interior do Rio de Janeiro. Queria comemorar a sua promoção: acabara de virar diretor do Departamento de Humor da emissora, chefiando cerca de cem profissionais. Compareceram à festa cerca de quarenta pessoas. Tudo transcorreu de forma alegre e descontraída. Numa Jacuzzi com capacidade para dez pessoas, instalada no jardim da casa e com vista para a Mata Atlântica, um grupo de mulheres e homens, entre eles Melhem, brincava animadamente. Em dado momento, começaram a bater palmas ritmadas e a cantar, em ritmo de jingle: “Não tem compliance lá, não tem compliance lá, não adianta reclamar no DAA.” A brincadeira foi gravada em vídeo, e quem vê as imagens percebe que não há qualquer conotação sexual no ambiente, mas mostra que as questões de compliance, as reclamações ao DAA, não eram um assunto estranho ao pessoal do Departamento de Humor. “A musiquinha era meio em tom de deboche”, disse um roteirista que estava na festa. “Era como se o Marcius estivesse acima do DAA.”

No cargo de diretor, Melhem efetivamente selou uma “parceria de sucessos” com a Globo, como a própria emissora reconheceu na nota em que anunciou seu desligamento definitivo. Melhem modernizou o humor da Globo. Em abril de 2019, a piauí publicou uma reportagem sobre as inovações que estava introduzindo na programação. Na matéria, ele contou como havia superado os estereótipos negativos que os velhos programas humorísticos sempre reforçavam. “Se eu disser que desde o início me incomodou, estarei mentindo. Porque cresci vendo esse tipo de humor, e você naturaliza”, disse Melhem. Em seguida, apontou o primeiro estereótipo que quis mudar. “A questão da mulher gostosa, objetificada, foi a primeira coisa que me causou desconforto.”

*Depois do fechamento desta reportagem, a Globo anunciou uma reestruturação do DAA. Segundo a emissora, Monica Albuquerque pediu desligamento.

JOÃO BATISTA JR. é repórter da piauí, ex-colunista de Veja e autor do livro A Beleza da Vida — A Biografia de Marco Antonio de Biaggi



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