“Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo”, publicado em 1917, inaugurou o chamado marxismo-leninismo. Marx enxergava a luta de classes como motor da história. No seu livro, Lênin flexionou o conceito, introduzindo a ideia de que as burguesias das nações industriais exploravam não só o próprio proletariado mas, ainda, os “países atrasados” coloniais e semicoloniais. Bolsonaro não deve ter lido nem Marx nem Lênin, mas utiliza uma versão vulgarizada do segundo para praticar seu nacionalismo de extrema direita. Segundo Lênin, no “estágio supremo” do capitalismo, as burguesias imperialistas deflagrariam guerras incessantes pela partilha de esferas de influência, abrindo caminho à revolução mundial. Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, fundaram a Terceira Internacional e mobilizaram a teoria leninista para definir a linha dos partidos comunistas nos “países atrasados”, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na Folha, publicada sábado, 19/12.
Neles, os comunistas deveriam forjar “frentes nacionais” —ou seja, alianças anti-imperialistas com as elites locais. Nascia, no pensamento de esquerda, o argumento de legitimação de regimes autoritários apoiados na bengala retórica do nacionalismo.
Pretexto perfeito. Os regimes autoritários pós-coloniais na África culparam as potências coloniais do passado e os imperialistas do presente por seus fracassos. Fidel Castro alegou que as carências cubanas derivavam da sabotagem imperialista dos EUA.
A ditadura de Suharto na Indonésia exigiu fidelidade à Pancasila, uma “filosofia oficial” destinada a preservar a nação das “influências ocidentais” (o liberalismo e o comunismo).
Os militares argentinos deflagraram a Guerra das Malvinas, contra os britânicos, invocando o anti-imperialismo. A China acusa o imperialismo de atentar contra sua soberania sempre que confrontada com denúncias de violações das leis de Hong Kong ou dos direitos humanos dos muçulmanos do Xinjiang.
Imperialismo: Bolsonaro redescobriu o artefato que cansou de utilizar no passado, quando acusava potências estrangeiras de pretenderem “roubar nosso nióbio”. O velho imperialismo volta ao centro do palco, apenas rebatizado como “globalismo”.
Na sua mórbida campanha anti-imunização, Bolsonaro fez mais que declarar as intenções de não tomar a vacina e de submeter os brasileiros a um (ilegal) termo individual de responsabilidade. Em outubro, o presidente ensaiou exigir que, antes de ser usada no Brasil, uma “vacina estrangeira” fosse “aplicada em massa no seu país de origem”.
Depois, na reunião dos Brics, declarou que “o Brasil busca uma vacina própria” —isto é, nacional e soberana. Na prática, seu Ministério da Saúde corre, atrasado, para importar agulhas e seringas.
Junto com o nacionalista grão-russo Putin e o nacionalista de esquerda López Obrador, do México, Bolsonaro ocupou os últimos lugares na fila do reconhecimento da vitória do “globalista” Biden —mas ainda adiantou-se a Kim Jong-un. Destacou-se dos colegas, porém, ao dar um passo à frente para tornar-se o único governante do mundo que reproduziu as sentenças de Trump sobre uma fictícia fraude eleitoral nos EUA.
Biden prometeu cobrar os compromissos do Brasil com o Acordo de Paris e a preservação ambiental. Bolsonaro retrucou batendo os tambores da “soberania nacional”, um ritmo praticado há décadas pelo nacionalismo militar. Acrescentou, numa imitação das bravatas de Saddam Hussein, a ameaça de trocar a “saliva” da diplomacia pela “pólvora” de batalhões dispostos a invadir Washington.
A Faria Lima jamais será a mesma. Os “liberais bolsonaristas”, essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira. Na canoa bolsonarista, Paulo Guedes deve trocar Hayek e Friedman por Lênin. Ou, para facilitar, em diapasão mais nacional e popular, por Jones Manoel, o queridinho de Caetano Veloso e da esquerda neostalinista brasileira.
Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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