Pular para o conteúdo principal

Dos Barões ao Extermínio pesquisa as origens da violência e das milícias no Rio

Da noite para o dia, José Cláudio Souza Alves converteu-se em celebridade. Sua obra tornou-se incontornável quando se pretende realizar discussão séria sobre as milícias e a violência no Rio. Não poderia ser diferente, pois o autor de alguma forma descreveu o fenômeno antes que recebesse tal denominação e se tornasse uma pauta central. Não deixa de ser uma situação curiosa para esse sociólogo que até então fora pouco ouvido por seus pares. Estudando desde os anos 1990 a questão dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense, conseguiu como ninguém captar a origem e transformação das milícias ao longo do tempo. Thiago B. Mendonça faz excelente resenha, publicada no Valor na sexta, 11/12. Vale a leitura.


Seu livro pioneiro, “Dos Barões ao Extermínio - Uma História da Violência na Baixada Fluminense”, que por muitos anos esteve fora de circulação (raridade inclusive no circuito de sebos), ganha segunda edição revista e ampliada, com novo prefácio, em que o autor realiza cuidadosa pesquisa de campo e revela as transformações da Baixada com as novas configurações das milícias e com a migração do tráfico para regiões periféricas (fugindo das UPPs e dos exércitos paramilitares milicianos, muitas vezes atuando em conjunto com a polícia).

O autor mostra a dinâmica da divisão dos bairros por facções e narra o destino trágico de jovens envolvidos com o crime. Explicita também a forma como milícias atuam nessas regiões e como incorporam a mão de obra outrora utilizada por outros grupos criminosos. Faz questão também de mostrar as resistências, muitas vezes organizadas por professores em escolas, e a forma como o próprio Estado mina essas iniciativas em favor das milícias, buscando desmobilizar as oposições à tirania.

Em um caso específico, o autor narra o fechamento de uma escola-modelo, uma das melhores entre as públicas do país, por pressão de grupos criminosos e seus braços políticos.

A escrita precisa de Alves alia-se à sensibilidade de quem possui compromisso indissolúvel com a sociedade sobre a qual escreve. Até hoje o autor vive na Baixada, em Seropédica, e dá aulas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, localizada no município. Surpreende a coragem com que aborda as questões da região onde vive. O compromisso com a verdade parece ofuscar a dimensão do medo. O autor é, em si, parte dessa dimensão de resistência ética que apresenta em algumas de suas páginas.

Ex-seminarista, aproximou-se da Baixada quando ainda pretendia ser padre e ali passou a dedicar-se à luta social, partindo do ideário transformador da Teologia da Libertação. Aos poucos afastou-se da fé, mas não da luta. Continuou atuando e vivendo na Baixada e transformou a violência da região em seu tema de pós-graduação. Foram anos de estudo e reflexão até que “Dos Barões ao Extermínio” tomasse forma.

O projeto é ambicioso. Ele traça um panorama da Baixada Fluminense e suas transformações desde que passou a ser ocupada pelos colonizadores e demonstra historicamente como o estigma da violência acompanha esse trajeto: era o tempo dos barões, latifundiários que exploravam mão de obra escrava e eram premiados por sua fortuna com títulos nobiliárquicos.

Como os demais projetos agrícolas de seu tempo, estabeleceram seu poder com o uso da brutalidade. Mas a região possuía também quilombos, que resistiram aos ataques constantes do poder público, estabelecendo estratégias de sobrevivência e de convívio com seu entorno. Não seria esse espaço, dividido entre barões, escravizados e quilombos, uma prefiguração do futuro?

Mudam-se os senhores, reconfiguram-se os poderes e suas representações, mas segue vivo o uso da violência para garantir o controle territorial da região. O estigma do medo e da ferocidade é traçado no tempo, passando por personagens folclóricos como o político-pistoleiro Tenório Cavalcanti (1906-1987), conhecido por ter o corpo fechado e andar com uma submetralhadora que apelidara carinhosamente de Lurdinha, até chegar à ditadura e à aliança entre grupos de extermínio comandados por policiais, comerciantes e bicheiros.

Antes da ditadura, um episódio dramático será o ponto de partida para o início das alianças espúrias entre matadores e poder local que caracterizarão a região. Em 1962, houve uma rebelião popular contra a carestia de alimentos.

Revoltados com a falta de gêneros alimentícios nas prateleiras, a população de cidades da Baixada Fluminense iniciou uma onda violenta de saques. Alimentos foram estocados e escondidos por comerciantes, em resposta à tentativa do governo João Goulart (1919-1976) de controlar preços dos produtos. A resposta foi uma revolta popular nunca vista, que levou estabelecimentos à falência.

Esse episódio fez com que os comerciantes da região passassem a incentivar a criação de grupos de extermínio formados por policiais, para eliminar as eventuais pessoas “problemas” que pudessem afetar seus negócios. Os habitantes da Baixada eram ao mesmo tempo os clientes e os potenciais inimigos.

Com o advento da ditadura, os grupos de extermínio passaram a ter carta-branca para cometer seus crimes e começaram a atuar em uma dupla missão: ao mesmo tempo em que eliminavam os pequenos ladrões da região, perseguiam lideranças comunitárias progressistas, sindicalistas e simpatizantes do trabalhismo.

Com o recrudescimento da ditadura, as mortes cresceram exponencialmente, assim como a ligação entre os grupos de extermínio e o crime organizado. Os bicheiros utilizaram-se dessa mão de obra para conquistar e unificar territórios do jogo e ampliar seus negócios. Formavam-se pequenos exércitos particulares, que influíam nas dinâmicas dos bairros. Passaram a dominar também as escolas de samba locais. É o caso de Anísio com a Beija-Flor de Nilópolis. Anísio era o braço da contravenção de uma família de políticos influentes, que aos poucos conquistava a hegemonia política da região.

 É esse laço entre contravenção, política e polícia que será pela primeira vez revelado nesta obra. Capítulo a capítulo, o autor demonstra como esse desvio gerado na ditadura se transformará em um monstro após a redemocratização. Para o autor, mais de 50 anos de descaso diante dessas populações da Baixada criaram uma sociedade onde o crime não é exceção, é a regra.

O resultado do abandono resulta em comunidades desfiguradas, com suas sociabilidades construídas sob a sombra da tirania. Os grupos de extermínio converteram-se em poder político. Seus matadores tornaram-se prefeitos, vereadores, deputados. Alves mostra que somos todos culpados por esse esquecimento. E o castigo veio a cavalo ou caiu de paraquedas: o Brasil aos poucos talvez se converta em uma grande Baixada, com seus políticos justiceiros e seus falsos moralismos.

A leitura do livro traz a sensação de que tudo se passou diante dos nossos olhos, mas preferimos fechá-los e imaginar que o pesadelo da ditadura fora superado, enquanto o ovo da serpente se rompia libertando suas crias.

“Dos Barões ao Extermínio - Uma História da Violência na Baixada Fluminense”

José Cláudio Souza Alves Consequência Editora; 244 págs., R$ 35 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe