No blog do jornalista Fausto Macedo, uma boa análise sobre o coronavírus de um ponto de vista diferente do que vem sendo publicado na mídia: o fenômeno da globalização, tão louvada pelos seus aspectos positivos, que permitiram um desenvolvimento econômico ímpar na história, também tornou as crises compartilhadas mundialmente. Na íntegra, abaixo:
A globalização foi a grande promessa do século passado. O fim da Guerra Fria, com a queda da União Soviética, criou a expectativa de um mundo em que os fluxos internacionais diminuíssem as distâncias entre produtores e consumidores, que gozariam de produtos melhores e mais baratos; e em que os laços econômicos entre os estados transbordassem, para a diminuição das disputas políticas e militares. Se todos dependessem de todos, a própria disputa por poder ficaria obsoleta e o mundo estaria resguardado de conflitos e de disputas territoriais que marcaram a história da humanidade.
Fundamentalmente, a mágica da globalização decorre de uma intensificação dos fluxos internacionais. Produtos, dinheiro e mão-de-obra são alguns dos fatores que circulariam livremente mundo afora, sem entraves impostos pelos estados, que teriam seus poderes limitados neste mundo integrado. A liberdade econômica, na globalização, reverteria-se também em liberdade política.
A globalização pura, no entanto, não faz escolhas morais. Há bons argumentos liberais para supor que uma maior integração dos mercados possa trazer benefícios econômicos – ainda que se possa questionar o caráter concentrador do processo. Mas, junto com esta integração dos mercados, deve-se esperar um crescente compartilhamento de crises também. A crise financeira de 2008, iniciada com a quebra do mercado imobiliário dos Estados Unidos, transformou-se em uma crise global, com a socialização dos danos entre ricos e pobres, em uma escala inédita desde 1929. A globalização que nos liga ao mundo em tempo real, com todas as oportunidades econômicas que decorrem destes laços, pode ser cruel em momentos de dificuldades.
O terrorismo também possui uma relação curiosa com a globalização. Os grupos islamistas mais radicais, com Al-Qaeda e Estado Islâmico, contrapõem-se ao fenômeno da globalização – com críticas a sua ocidentalização do mundo – ao mesmo tempo em que se valem de ferramentas da própria globalização para empreenderem seu combate em nível mundial. Enquanto critica a degeneração valorativa e cultural causada pelo ocidente, o Daesh difunde suas ideias pelo Twitter, Youtube e Telegram, mostrando que a globalização pode apresentar contradições entre seus objetivos e seus efeitos.
O coronavírus apresenta mais um efeito sombrio da globalização. A última versão grave do coronavírus foi a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês) que preocupou o mundo entre 2002 e 2003. Ainda que o epicentro da SARS também tenha sido a China, há uma diferença crucial entre os dois momentos, que é a posição do gigante asiático no mundo. No início dos anos 2000, a China ainda era um país em processo de abertura e recentemente aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC). Era um país promissor, exportador de quinquilharias de todos tipo e que ostentava a 6ª maior economia do mundo – posição devida à sua gigantesca população. Quase duas décadas depois, a economia chinesa foi multiplicada por 10, ultrapassando seu vizinho Japão, para assumir a posição de segunda maior economia do mundo e é responsável por produzir e exportar bens de alta tecnologia para o mundo inteiro. Como consequência disso, é o maior parceiro comercial de um número muito expressivo de países – entre eles, Brasil e Estados Unidos.
Se a China se beneficiou da globalização, para levar ao mundo os seus produtos, o coronavírus é o reverso da moeda. A covid-19, versão atual do mesmo coronavírus que criou a SARS, desconhece fronteiras, em linha com o caráter internacionalizado da economia chinesa. O fluxo intenso de pessoas que entra e sai da China, pelos mais diversos motivos, premia a eficiência econômica chinesa e expande o vírus para o mundo inteiro – literalmente.
Não obstante, a globalização pode apresentar soluções.
Se a China foi o primeiro país a ser atingido pelo vírus, foi também o primeiro a desenvolver formas de conter a sua expansão. O país contabilizava 3500 casos novos diários em janeiro e registrou menos de 30 novos casos por dia ao longo da última semana. Para tal, o país se valeu de uma estratégia de isolamento de regiões severamente atingidas pelo vírus, associada à obsessão pelo diagnóstico de novos casos. Centros médicos estão espalhados por todo canto, com testes gratuitos, rápidos e de resultado instantâneo para qualquer pessoa que apresente febre. Se houver o diagnóstico de infecção, a pessoa é isolada imediatamente, de modo a não voltar para o seu lar, onde tenderia a infectar seus familiares. A medida é radical, chegando a separar filhos de seus pais, mas muito eficaz na contenção do vírus. As soluções desenvolvidas pela China já estão sendo aplicadas pela Coreia do Sul, com notável sucesso na limitação de novos casos.
A declaração, por parte da OMS, de que a covid-19 representa uma pandemia global, chamou a atenção para a necessidade de todos os países mobilizarem-se para a contenção desta ameaça. É significativo que a Itália tenha demandado informações sobre a estratégia implementada pela China no combate ao coronavírus, já que o país de Giuseppe Conte tem sofrido com um agravamento cotidiano da situação, sobretudo na região da Lombardia – a mais rica do país.
A globalização apresenta instrumentos para que os países cooperem na busca por alternativas diante de um quadro tão grave. Mas os países precisam querer. A decisão de Donald Trump de proibir viagens de europeus para os Estados Unidos parece andar no caminho oposto. O país não aplica algumas das medidas centrais implementadas por China e Coreia do Sul na contenção à doença, como o isolamento imediato de pessoas infectadas. A quarentena domiciliar tende a espalhar o vírus entre os membros de uma família, o que agrava o quadro sanitário do país. Além disso, o coronavírus já não vem de fora: ele já está instalado nos Estados Unidos, sobretudo no estado de Washington, no noroeste do país. E, por fim, a decisão de suspensão das viagens não se aplica ao Reino Unido, onde o Primeiro-Ministro Boris Johnson disse estimar em 10.000 pessoas infectadas pelo vírus. A proibição das viagens é ineficaz e ainda deixa um espaço aberto para a entrada de pessoas infectadas.
A globalização não possui restrições em suas transações econômicas e comerciais, a ponto de levar um país nominalmente comunista ao posto de segunda maior economia do mundo. Os Estados Unidos poderiam extrair daí o que há de melhor na globalização e extrair de seu grande rival econômico, a China, as lições para o controle de um dos maiores riscos sanitários do século.
*Tanguy Baghdadi é professor de Relações Internacionais da Universidade Veiga de Almeida e colunista do podcast Petit Journal
A globalização foi a grande promessa do século passado. O fim da Guerra Fria, com a queda da União Soviética, criou a expectativa de um mundo em que os fluxos internacionais diminuíssem as distâncias entre produtores e consumidores, que gozariam de produtos melhores e mais baratos; e em que os laços econômicos entre os estados transbordassem, para a diminuição das disputas políticas e militares. Se todos dependessem de todos, a própria disputa por poder ficaria obsoleta e o mundo estaria resguardado de conflitos e de disputas territoriais que marcaram a história da humanidade.
Fundamentalmente, a mágica da globalização decorre de uma intensificação dos fluxos internacionais. Produtos, dinheiro e mão-de-obra são alguns dos fatores que circulariam livremente mundo afora, sem entraves impostos pelos estados, que teriam seus poderes limitados neste mundo integrado. A liberdade econômica, na globalização, reverteria-se também em liberdade política.
A globalização pura, no entanto, não faz escolhas morais. Há bons argumentos liberais para supor que uma maior integração dos mercados possa trazer benefícios econômicos – ainda que se possa questionar o caráter concentrador do processo. Mas, junto com esta integração dos mercados, deve-se esperar um crescente compartilhamento de crises também. A crise financeira de 2008, iniciada com a quebra do mercado imobiliário dos Estados Unidos, transformou-se em uma crise global, com a socialização dos danos entre ricos e pobres, em uma escala inédita desde 1929. A globalização que nos liga ao mundo em tempo real, com todas as oportunidades econômicas que decorrem destes laços, pode ser cruel em momentos de dificuldades.
O terrorismo também possui uma relação curiosa com a globalização. Os grupos islamistas mais radicais, com Al-Qaeda e Estado Islâmico, contrapõem-se ao fenômeno da globalização – com críticas a sua ocidentalização do mundo – ao mesmo tempo em que se valem de ferramentas da própria globalização para empreenderem seu combate em nível mundial. Enquanto critica a degeneração valorativa e cultural causada pelo ocidente, o Daesh difunde suas ideias pelo Twitter, Youtube e Telegram, mostrando que a globalização pode apresentar contradições entre seus objetivos e seus efeitos.
O coronavírus apresenta mais um efeito sombrio da globalização. A última versão grave do coronavírus foi a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês) que preocupou o mundo entre 2002 e 2003. Ainda que o epicentro da SARS também tenha sido a China, há uma diferença crucial entre os dois momentos, que é a posição do gigante asiático no mundo. No início dos anos 2000, a China ainda era um país em processo de abertura e recentemente aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC). Era um país promissor, exportador de quinquilharias de todos tipo e que ostentava a 6ª maior economia do mundo – posição devida à sua gigantesca população. Quase duas décadas depois, a economia chinesa foi multiplicada por 10, ultrapassando seu vizinho Japão, para assumir a posição de segunda maior economia do mundo e é responsável por produzir e exportar bens de alta tecnologia para o mundo inteiro. Como consequência disso, é o maior parceiro comercial de um número muito expressivo de países – entre eles, Brasil e Estados Unidos.
Se a China se beneficiou da globalização, para levar ao mundo os seus produtos, o coronavírus é o reverso da moeda. A covid-19, versão atual do mesmo coronavírus que criou a SARS, desconhece fronteiras, em linha com o caráter internacionalizado da economia chinesa. O fluxo intenso de pessoas que entra e sai da China, pelos mais diversos motivos, premia a eficiência econômica chinesa e expande o vírus para o mundo inteiro – literalmente.
Não obstante, a globalização pode apresentar soluções.
Se a China foi o primeiro país a ser atingido pelo vírus, foi também o primeiro a desenvolver formas de conter a sua expansão. O país contabilizava 3500 casos novos diários em janeiro e registrou menos de 30 novos casos por dia ao longo da última semana. Para tal, o país se valeu de uma estratégia de isolamento de regiões severamente atingidas pelo vírus, associada à obsessão pelo diagnóstico de novos casos. Centros médicos estão espalhados por todo canto, com testes gratuitos, rápidos e de resultado instantâneo para qualquer pessoa que apresente febre. Se houver o diagnóstico de infecção, a pessoa é isolada imediatamente, de modo a não voltar para o seu lar, onde tenderia a infectar seus familiares. A medida é radical, chegando a separar filhos de seus pais, mas muito eficaz na contenção do vírus. As soluções desenvolvidas pela China já estão sendo aplicadas pela Coreia do Sul, com notável sucesso na limitação de novos casos.
A declaração, por parte da OMS, de que a covid-19 representa uma pandemia global, chamou a atenção para a necessidade de todos os países mobilizarem-se para a contenção desta ameaça. É significativo que a Itália tenha demandado informações sobre a estratégia implementada pela China no combate ao coronavírus, já que o país de Giuseppe Conte tem sofrido com um agravamento cotidiano da situação, sobretudo na região da Lombardia – a mais rica do país.
A globalização apresenta instrumentos para que os países cooperem na busca por alternativas diante de um quadro tão grave. Mas os países precisam querer. A decisão de Donald Trump de proibir viagens de europeus para os Estados Unidos parece andar no caminho oposto. O país não aplica algumas das medidas centrais implementadas por China e Coreia do Sul na contenção à doença, como o isolamento imediato de pessoas infectadas. A quarentena domiciliar tende a espalhar o vírus entre os membros de uma família, o que agrava o quadro sanitário do país. Além disso, o coronavírus já não vem de fora: ele já está instalado nos Estados Unidos, sobretudo no estado de Washington, no noroeste do país. E, por fim, a decisão de suspensão das viagens não se aplica ao Reino Unido, onde o Primeiro-Ministro Boris Johnson disse estimar em 10.000 pessoas infectadas pelo vírus. A proibição das viagens é ineficaz e ainda deixa um espaço aberto para a entrada de pessoas infectadas.
A globalização não possui restrições em suas transações econômicas e comerciais, a ponto de levar um país nominalmente comunista ao posto de segunda maior economia do mundo. Os Estados Unidos poderiam extrair daí o que há de melhor na globalização e extrair de seu grande rival econômico, a China, as lições para o controle de um dos maiores riscos sanitários do século.
*Tanguy Baghdadi é professor de Relações Internacionais da Universidade Veiga de Almeida e colunista do podcast Petit Journal
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.