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Gabeira: um vírus mudando o mundo

Texto muito interessante do jornalista Fernando Gabeira, publicado no Estadão na sexta-feira, dia 20/3, apontando questões importantes e o possível legado da atual pandemia de coronavírus. Na íntegra, abaixo.

Não é fácil escrever artigos em tempos de pandemia. Os fatos são dinâmicos e nos ultrapassam. Eles são graves e tornam irrelevantes os nossos critérios de importância.
Romances como A Peste, de Camus, apesar de escrito em 1947, conseguem tratar de temas universais como solidariedade e sentimentos mesquinhos envoltos na condição humana. Era interessante e até risível a velha tese da teoria do caos: tudo no universo está interligado e o bater de asas de uma borboleta altera o mundo. Se se substituir a borboleta por um morcego que acabou comido por um pingolim, por sua vez comido por um homem, foi um bater de asas que não só alterou o mundo, mas o fez de forma profunda e definitiva.
Quem diria que somos tão frágeis e toda a arrogância da civilização humana não é mais que ilusão passageira. Não há tanto espaço para lamentações. É preciso definir o que importa. Claro que o fato de o presidente da República ser um ignorante tem um peso. Isso será resolvido a seu tempo. No momento é preciso esquecê-lo em nome do essencial: que fazer?
As fronteiras estão se fechando na Europa e na América Latina. Vamos fechar as nossas? Todos os casos vieram da Europa e dos EUA. Algumas fronteiras que conheço são bastante porosas. Mesmo fechando-as, vai passar muita gente.
A primeira é a fronteira com a Venezuela, em Pacaraima. O sistema de saúde bolivariano entrou em colapso há muito tempo. Com isso tensiona a Colômbia e o Brasil. Roraima está no limite. Quando vejo centenas de pessoas atravessando a fronteira colombiana usando máscaras, imagino que muitos virão também para o Brasil.
A Venezuela ainda não foi atingida seriamente pelo coronavírus. Mas o simples aumento do fluxo, neste momento, merece atenção especial. Antes da Operação Acolhida e da organização de abrigos, as condições sanitárias nas ruas de Pacaraima eram preocupantes. Mesmo com abrigos, ainda havia muita gente na rua.
Outra fronteira porosa é com a Guiana Francesa. É fácil atravessar o Rio Oiapoque. Os franceses já fecharam o comércio. Que tipo de controle o lado brasileiro pode instalar? São regiões distantes e o vírus ainda não apareceu com força por lá. Há tempo de preparação.
O coronavírus precipitou um movimento que já era irreversível: a passagem para o virtual. O ministro Mandetta afirmou que iria usar a telemedicina. Isso é essencial até na vida cotidiana dos brasileiros. Em tempo de pandemia, entretanto, abrem-se muito mais possibilidades do que simples contato virtual entre médico e paciente.
No Brasil há 235 milhões de smartphones em uso. Sua existência abre inúmeras oportunidades criativas. Na China e na Coreia do Sul os aplicativos monitoram a temperatura dos usuários. Em Israel os pacientes em casa também estão sendo monitorados.
O complexo processo de vacinação anual contra a gripe poderia ser feito com mais segurança com o uso de aplicativos. Seria mais fácil saber os pontos de vacinação, farmácias incluídas, e até sua disponibilidade momentânea, isto é, o número de pessoas na fila. Apesar dos transtornos das fake news, do distanciamento físico das pessoas, o mundo virtual oferece muitas possibilidades de ajuda.
Naturalmente, o governo – a parte do governo que considera o coronavírus um problema – busca saídas. Mas o potencial criativo da sociedade nesse campo é muito maior. Como canalizá-lo e extrair suas possibilidades é tarefa a ser pensada. No momento, o potencial está concentrado em convencer as pessoas de que estamos diante de uma situação muito séria. Isso está sendo feito também pela imprensa séria e pelos cientistas que aparecem nela.
Outra questão, que deveria interessar à esquerda, é a desigualdade de riscos. Nem todos podem isolar-se. Nem todos podem lavar as mãos. Já mencionei o problema do saneamento em artigo aqui, no Estadão, que procurava pensar além do coronavírus. Não há tempo para resolver o problema do saneamento em médio prazo, quanto mais no auge de uma crise. Mas parte do dinheiro que se vai gastar deveria ser usada para garantir água limpa às comunidades que não a têm. E álcool gel gratuito.
Da mesma forma, enquanto o transporte de massas estiver funcionando será necessário um debate sobre a redução dos riscos entre os usuários. Novos horários, aumento de frequência da limpeza, limitação do número de passageiros, distribuição de álcool gel, há um longo caminho para reduzir os riscos dos que precisam trabalhar.
Aliás, a discussão sobre o emprego do dinheiro de ajuda do governo deveria ser mais ampla. Em quase todos os países há um destaque para ajuda às pequenas empresas. Nos EUA prevê-se um cheque de mil dólares para cada pessoa.
Em vez de estarem discutindo se o dinheiro do Orçamento vai para o governo ou para o Congresso, o único tema possível hoje é admitir que ele deve ser todo dirigido ao combate ao coronavírus e como será distribuída a parte destinada a atenuar os efeitos negativos na economia.
O mundo político brasileiro está diante de um grande desafio. Não importa a plataforma em que se vai mover, o fundamental é que tente dar respostas. Incluída a única pergunta sensata que Bolsonaro conseguiu formular em toda esta crise: como amparar os trabalhadores informais.



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