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Estávamos trabalhando errado, diz Paes de Barros ao Valor

Excelente a entrevista de Ricardo Paes de Barros ao repórter Bruno Villas Bôas, publicada sexta-feira, 20/3, no Valor Econômico. “O pior que podemos fazer no meio da crise é parar”, defende economista. Continua abaixo, na íntegra.

O enfrentamento do novo coronavírus exige uma visão mais estratégica do governo federal, para além das medidas de curto prazo de capital de giro de empresas e da ampliação de recursos para programas sociais. Professor do Insper, o economista Ricardo Paes de Barros - PB, apontado como um dos formuladores do Bolsa Família - defende que o momento é de mudanças estruturais na forma como as pessoas trabalham, se locomovem e consomem.
“Estávamos trabalhando de maneira muito aglomerada, sem dar atenção para questões sanitárias. Também trabalhamos de maneira muito sincronizada, sobrecarregando o transporte público. Os ônibus circulam muito cheios, e isso não é sanitariamente bom. É como se tivéssemos agora em uma situação de desastre natural ou um evento de uma guerra”, disse Paes e Barros, em entrevista ao Valor.
Ele acredita que os locais de trabalho precisam mudar, seja em home office (trabalho a partir de casa), seja de forma menos concentrada nas cidades. Da mesma forma, os horários de trabalho e de serviços precisam ser alterados, evitando o sincronismo de deslocamentos, afirma. Esse menor sincronismo poderia, eventualmente, gerar menos produtividade, mas ele vê como caminho necessário.
“É o momento de trabalhar mais porque precisamos de recursos, mas, se trabalharmos todos amontoados, não vai ser eficiente, porque vamos colaborar com a transmissão do vírus”, acredita Paes de Barros, que sugere a redução do número de pessoas em transporte público, em elevadores, e maiores padrões sanitários em estabelecimentos.
O economista acrescenta que mudanças assim ocorreram na história da humanidade. É o caso do esgotamento sanitário das cidades, que foi pensado após crises de saúde pública. E exigiria investimentos públicos (em transporte público, em infraestrutura sanitária). Seria necessário, portanto, tomar recursos de gerações futuras, o que significa na prática elevar o endividamento do Estado brasileiro.
Esquece o teto dos gastos. Numa crise dessas, o teto do gasto é uma piada. Não se pode deixar de pegar dinheiro”
Para ele, os poderes não estão atualmente organizados para essas mudanças, com brigas entre Executivo e o Congresso Nacional. Ele reitera que medidas do governo de elevar recursos para o Bolsa Família ajudam, mas não são suficientes sem uma visão mais estratégia de médio e longo prazos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Algumas lideranças pelo mundo subestimaram o coronavírus e mudaram de opinião. Por aqui o presidente falou em “histeria”. Qual sua opinião?
Ricardo Paes de Barros: O quadro interno de saúde pública é bem claro, só olhar as estatísticas. Existe o exemplo da Itália, que não levou a sério, e os exemplos da Coreia do Sul e da China, que levaram o novo coronavírus a sério. É um evento de grandes proporções na saúde pública e quem duvidar disso vai sofrer as consequências. O melhor a fazer é agir. Do ponto de vista econômico, a abordagem precisa ser bem diferente do que algumas pessoas possam imaginar. Um evento desses, em vez de se trabalhar menos, a regra é trabalhar mais. O que esse vírus está contando para a gente é que, na verdade, temos que trabalhar. O vírus não pode representar uma crise para o trabalho e para a economia, caso contrário os mais pobres vão sofrer muito. A mensagem é: gente, temos que trabalhar mais. Mas nós temos que trabalhar de maneira diferente, porque estávamos trabalhando de maneira errada.
Valor: Errada em que sentido?
Paes de Barros: Estávamos trabalhando de maneira muito aglomerada, sem dar atenção para questões sanitárias. Também trabalhamos de maneira muito sincronizada, sobrecarregando o transporte público. Os ônibus circulam muito cheios, e isso não é sanitariamente bom. É como se tivéssemos agora em uma situação de desastre natural ou um evento de uma guerra. É o momento de trabalhar mais porque precisamos de recursos, mas, se trabalharmos todos amontoados, não vai ser eficiente, porque vamos colaborar com a transmissão do vírus. Precisamos descobrir maneiras de trabalhar de forma mais isolada, mudando os nossos hábitos. Vai ter mais home office. Os empregos precisam ser menos concentrados em poucas regiões, como as da Faria Lima e da Paulista. Isso é um problema. O ideal seria espalhar os empregos pela cidade, ter mais em bairros afastados do centro, por exemplo. Hoje vivemos também algo do passado, que é atuar de forma sincronizada. Todos vão para trabalho na mesma hora. Existem tarefas do trabalho que podem ser realizadas às 11h da noite, outras podem ser feitas às 5h da manhã. Então, é preciso dessincronizar.
Valor: A retirada desse sincronismo não pode tornar o trabalho menos produtivo?
Paes de Barros: O sincronismo que temos não é todo funcional. Vários serviços públicos poderiam ser feitos fora do horário de trabalho. Poderíamos colocar todo o trabalho para a retirada de documentos para o fim de semana. Muita coisa poderia funcionar em horário diferente no setor privado. No supermercado, funcionários colocam produtos nas estantes, etiquetam preços, numa hora em que você está comprando alimentos. Todas as escolas funcionam no mesmo horário, poderiam ter horários diferentes, o que melhoraria o trânsito da cidade. Esse sincronismo talvez fosse importante em certo momento histórico, assim como a ideia de ir ao trabalho todo dia. Está na nossa mente que temos que fazer. No jornalismo, por exemplo, você sabe que estar na redação não é o que importa, mas sim escrever o que é preciso escrever, de qualquer lugar, em qualquer hora. Para o bem ou para o mal, afetando ou não a produtividade, temos que mudar a maneira de fazer as coisas.
Valor: Transformações assim levam muito tempo?
Paes de Barros: Isso aconteceu diversas vezes na história da humanidade. A maneira como fazemos hoje saneamento das cidades surgiu exatamente porque tivemos crises de saúde pública que levou a organizarmos o esgotamento das cidade. Obviamente que vamos ter que trabalhar de maneira diferente no curto prazo, mais distantes do que estamos fazendo agora, e várias medidas precisarão ser tomada para que passemos a trabalhar de maneira diferente. Isso vai requerer liderança. E, provavelmente, muito recursos público. Não queremos ônibus cheios de gente, temos que ter mais ônibus. Precisamos que esses ônibus estejam super limpos. Precisamos melhorar muito as condições de saneamento, sanitárias. No futuro, a mesa de um restaurante vai ter que estar sanitariamente melhor. A saúde pública vai ter que dizer quantas pessoas podem andar num elevador ao mesmo tempo, mas não podem ser cinco ou sete, dependendo do tamanho do elevador. Isso vai requerer, no curto prazo, um exército voltado para promover esse saneamento, fazer serviços e fiscalizar serviços. Nossa logística vai ter que ser melhorada, em termos de aumentar a oferta de serviços, se quisermos continuar com a economia funcionando sem epidemias gigantes. Tudo isso vai envolver lideranças políticas para criar regras e convencer a todos de que a coisa precisa ser feita desta maneira, com a necessidade de uma grande quantidades de pessoas para implementar isso. Mas é já para esta crise.
Valor: Algo assim exigiria muito recurso público?
Paes de Barros: A grande vantagem do setor público é que ele pode pegar emprestado da gerações futuras, por meio do endividamento. Podemos pegar emprestado, porque o endividamento faz sentido em crises como essa. É a hora que precisa realmente pegar emprestado do futuro e fazer a transição para o futuro melhor. É uma crise de saúde pública e que precisamos enfrentar de maneira construtiva, mudando nossos hábitos, maneiras de viver e de trabalhar. Aumentamos muito o endividamento na última década e nem sempre com resultados importantes.
Talvez o governo brasileiro não esteja dando a importância que esse fenômeno merece. Espero que soluções aconteçam”
Valor: Mas estamos ainda limitados pelo teto dos gastos.
Paes de Barros: Esquece o teto dos gastos. Numa crise dessas, o teto do gasto é uma piada. Não pode deixar de pegar dinheiro emprestado numa situação dessas, ou a economia vai entrar em recessão. Agora é exatamente o momento em que não se pode fazer uma austeridade fiscal. É claro que se vai pegar emprestado no mínimo possível, mas não pegar emprestado porque existe um lei do passado, isso não existe O mundo está em frente a uma crise de dimensões gigantescas e é a hora de todo mundo pegar emprestado.
Valor: O governo anunciou medidas mais localizadas, como garantir capital de giro e aumento do Bolsa Família. Falta, então, uma visão mais estratégica?
Paes de Barros: Não podemos pensar que essa é uma pequena crise que vai passar rápido. Em certo sentido, é como se estivéssemos entrando em uma grande guerra. A única maneira de controlar essa onda é um tremendo impacto sobre o hábito das pessoas. Não vamos resolver o problema apenas vencendo o vírus na força bruta ou deixando ele passar, mas com pensamento estratégico do que está errado e do que precisamos mudar para vencê-lo. É preciso ter um gabinete de crise para decisões instantâneas, mas é preciso ter também visão de longo prazo. Evidentemente que a única maneira de resolver o transporte aéreo em longo prazo é convencer as pessoas de que é saudável pegar o avião com 300 pessoas dentro mesmo que algum passageiro esteja doente. Se a solução proposta for distribuir máscara para todo mundo, a saúde pública precisará dizer se é a solução saudável. Mas dar crédito para companhia aérea não vai resolver o problema estrutural. Da mesma forma que se fiscaliza a manutenção do avião, vamos nos certificar que o sustenta de transporte funciona de maneira saudável.
Valor: Parte dos economistas prevê recessão no primeiro semestre. Não cabem, portanto, medidas de amortecimento da crise?
Paes de Barros: Certamente as medidas são bem-vindas e vão ajudar. Podem ser parte do alívio de um eventual aumento da pobreza no curto prazo. Só não podemos achar que aumentar o programa Bolsa Família, o abono salarial ou seguro-desemprego vai resolver. Seria o mesmo que imaginar que é uma situação transitória, de curta duração, que não envolve um ajuste estrutural. Neste momento, vários serviços públicos podem ser muito necessários. Por exemplo, contratar pessoal para promover as mudanças estruturais pode aliviar a pobreza. Seria necessário um gasto estratégico, elevando emprego público em algo que vai realmente melhorar a vida das pessoas e facilitar que mais gente possa trabalhar. É um gasto público com aumento do emprego que pode, estruturalmente, ser mais importante do que simplesmente elevar o Bolsa Família. Até porque muitas das pessoas que podem ser afetadas por esse processo não estão no Bolsa Família. São pessoas de centro urbanos, e muito do Bolsa Família está em áreas rurais.
Valor: Quais empregos exatamente estão ameaçados e quais poderiam ser gerados pela contratação pelo setor público?
Paes de Barros: Provavelmente essa crise vai afetar mais trabalhadores por conta própria, pequenos empreendedores. Pessoas que estão há dez anos trabalhando na rua, por exemplo, vendendo refeição, e vão ter a clientela destruída. São também trabalhadores informais, não protegidos pela legislação trabalhista. Também podem perder ocupações da manicures ao trabalhador nem tão pobre assim, que trabalha em shopping centers, que estão vazios. Para superar a crise com certa rapidez, não podemos brigar com a saúde pública, mas acomodá-la. A saúde pública não está brigando com o trabalho, mas com a aglomeração. É algo que precisa ser liderado pelo governo e vai gerar novas ocupações, seja na promoção de um ambiente mais saudável, seja fiscalizando que esse ambiente é mais saudável, como em restaurantes, em transportes. Os desempregados mais pobres podem ser acomodados nesses empregos. Eles não precisam necessariamente ser empregos públicos, podem ser empresas contratadas para oferecer esses serviços. Uma vantagem enorme é que o Brasil tem um grau elevado de conhecimento e recursos humanos em termos de saúde pública. Quando a Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz] diz algo, os brasileiros acreditam. Temos que usar isso.
Valor: A estratégia exige coordenação política, mas o momento é de conflito do presidente com o Congresso. Como resolver?
Paes de Barros: Não acho que o Brasil está organizado para essa mudança, mas nada como um crise violenta para paralisar com essa loucura e todos sentarem para conversar seriamente, ficar no mesmo time. Sou otimista. Talvez o governo brasileiro não esteja dando a importância que esse fenômeno merece. Espero que soluções aconteçam amanhã, mas não tenho dúvida de que o Congresso e a Presidência vão se entender, assim como a sociedade civil e empresários. É preciso um acordo dos segmentos da sociedade. Questionar o que a sociedade precisa de cada um, e segurar a onda e não fazer necessariamente o que é mais lucrativo individualmente.
Valor: A população já está bastante consciente da necessidade dessas mudanças?
Paes de Barros: Em São Paulo, a coisa mudou em apenas dois a três dias. Está como na Itália: ruas vazias, ônibus vazios. Acho que a população muda de opinião muito rápido. No fim do dia, as pessoas são racionais e percebem que o problema é aqui, e não na China. Rapidamente estará todo mundo cobrando das autoridades que o ônibus não pode ser superlotado. Da mesma forma, jogadores de futebol estão dizendo que não querem jogar, mesmo sem ter público no estádio. Acho que vai ser bem rápido. Medidas necessárias serão menos impopulares e acho que, desta forma, o pico da incidência do coronavírus vai ser menor. O Brasil, em certo sentido, tem que agir rápido. Não podemos parar. Ficar em casa parado, sem produzir. O pior que podemos fazer no meio da crise é parar.



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