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A vida como ela é: as visões de um motorista e um entregador sobre a pandemia

Maravilhosa a reportagem de Letycia Cardoso na revista Época. Jornalismo é isto, reportar o que de fato está acontecendo nas ruas, afinal, nem todo mundo está em home office ou isolado em casa. Na íntegra, abaixo.

Há três anos trabalho como motorista de aplicativo. Antes, fazia entregas para uma grande cervejaria, mas a empresa onde eu trabalhava faliu e tive de me virar. No início, o rendimento como autônomo era bom, mas, depois, com o desemprego maior no país, muita gente começou a trabalhar dirigindo por conta própria, o que aumentou a concorrência e prejudicou os ganhos do mês. Por isso, resolvi voltar ao mercado formal. Eu tinha feito uma entrevista para uma empresa de ônibus, fui aprovado, fiz o exame admissional e estava a três dias de assinar o contrato quando ligaram cancelando por causa do surto do novo coronavírus.
Se o lucro como motorista de aplicativo já estava baixo, com a pandemia, então, piorou tudo! Com mais gente trabalhando em casa, o número de corridas diminuiu muito. Quando aparece alguma, são aquelas de tarifa mínima, para o mercado ou para o posto de saúde. Antes, trabalhando de segunda a sexta-feira, dez horas por dia, eu conseguia tirar R$ 140, já descontado o combustível. Agora, faço metade disso. O carro roda mais vazio que cheio.
Eu costumava trabalhar na Zona Sul do Rio de Janeiro e no bairro da Barra da Tijuca, por dois motivos: corridas mais longas e menor risco de assalto. Que ladrão, em sã consciência, vai querer roubar um carro para ficar preso no engarrafamento? Agora não vale mais a pena ir para tão longe, e tenho feito corridas no subúrbio mesmo. Para me proteger, ligo o aplicativo em casa. Quando o cliente chama, saio daqui, faço o deslocamento e volto para minha garagem.
A gente também fica receoso de ser contaminado, mas essa é minha única fonte de renda. Estou tentando me prevenir ao máximo, andando de janelas abertas, usando álcool em gel. Outro dia, entrou uma senhora tossindo no carro. Ela falou que estava resfriada mas, por via das dúvidas, depois que ela desceu, limpei a parte de trás e a maçaneta por causa dos outros clientes.
Meu medo maior é que decretem que ninguém pode sair de casa mesmo, de forma mais rígida, como fizeram em outros países. Aí não faço ideia de quanto vou ganhar. Acho que meu rendimento vai ser próximo a zero. E o pior: acabei de trocar de carro. Comprei um Logan seminovo financiado. Não paguei nem a primeira parcela. Estava com meu carro anterior quitado e fui trocar logo agora. Foi uma péssima coincidência! Ter esse compromisso é uma pressão psicológica enorme.
Minha família só não está passando tanto aperto porque minha esposa trabalha de carteira assinada, como técnica de enfermagem em um hospital particular. Ela estava de férias e vai voltar agora, no auge do novo coronavírus. Pior que não ter trabalho é ter alguém doente na família. Espero que ela não se contamine. A gente fica apreensivo porque faz planos e, de repente, tudo vai por água abaixo. Vamos ter de esperar o tempo passar para ver que rumo isso vai tomar.
Acredito que essa crise de saúde vai se tornar uma tremenda crise econômica, empobrecendo as pessoas do mundo inteiro. Vai ser um efeito dominó: os patrões não vão conseguir honrar os pagamentos e muita gente não vai conseguir pagar suas contas.
Tenho 42 anos e posso afirmar que hoje é muito mais difícil arrumar um emprego do que quando comecei. Antes, sem faculdade, você estava acima da média das outras pessoas, por causa da experiência. Hoje, não há nem vagas!
Comecei a trabalhar aos 14 anos, como jovem aprendiz — na época era chamado de menor aprendiz — em uma indústria farmacêutica e fiquei lá até os 26 anos. Fui sendo promovido e alcancei a posição de subgerente de produção. Cheguei, até, a entrar numa faculdade particular de farmácia. Mas a empresa resolveu se mudar para Belém, no Pará, por causa de incentivos fiscais. Perdi meu emprego e tive de parar a graduação. Tentei uma recolocação e não consegui. As pessoas falavam que meu último salário era muito alto e descartavam meu currículo. Depois, então, atuei como taxista por sete anos.
Minha vontade mesmo é voltar a trabalhar de carteira assinada. Acho que vou tentar fazer um curso para recolocação no mercado de trabalho. Penso em algo como um técnico de tecnologia da informação. Nada a ver, não é? Seria um recomeço…
Jorge Wiliam dos Santos, 42 anos, motorista de aplicativo

Desde que começaram a aparecer os casos do novo coronavírus aqui no Brasil, o número de pedidos de comida triplicou. Os restaurantes estão vazios, sem uma alma viva! A cidade de Campinas, aqui em São Paulo, parece até Chernobyl. Só tem motoboy e barata andando na rua. O comércio fechou completamente. O negócio está esquisito e parece que só vai piorar.
A maioria dos clientes pede para deixar o pedido no capacho da porta. Isso me gera uma revolta! Parece que nós, trabalhadores, é que somos responsáveis por transmitir o vírus. Somos tratados como leprosos. As pessoas têm medo de encostar até na embalagem, pegam as sacolas com um pano. Outro dia, um senhor digitou a senha na máquina do cartão usando uma caneta. Depois que ele me viu higienizar o aparelho com álcool, me deu parabéns. Eu também estou com medo, mas preciso trabalhar.
Os aplicativos anunciaram um fundo de R$ 1 milhão para ajudar os entregadores que pegarem a doença. Isso significa o quê? Eu preciso me contaminar para receber apoio? E meus pais? E meu filho? Eles (os aplicativos) investem rios de dinheiro em um comercial de televisão, mas não gastam R$ 100 mil para comprar luva, álcool em gel e máscara para a gente. Como os portadores podem transmitir o vírus mesmo sem sintomas, neste período não estou visitando nem meus pais, que são idosos, nem meu filho de 5 anos, que mora com a mãe dele.
De meus 37 anos, há 16 eu trabalho com entregas. No início, tinha carteira assinada num restaurante. Minha jornada era das 11 horas às 15 horas e depois das 18 horas até as 23 horas. Com a chegada dos aplicativos, encerraram o contrato e, agora, preciso trabalhar bem mais para ganhar praticamente o mesmo. Faço entregas para um restaurante de frutos do mar, para Rappi, iFood, Uber Eats e, ainda, para a Loggi. Tudo isso para pagar a pensão, o aluguel e a prestação de um terreno que comprei, que somam uns R$ 3 mil, além dos gastos com cartão de crédito, com minha própria alimentação e as despesas da moto, que são basicamente combustível, óleo e manutenção.
Em um dia normal, eu chegava a fazer no máximo 22 entregas. Desde a semana passada, o celular não para de tocar. Você acaba de entregar e ele já está apitando de novo. Minha jornada tem sido das 8 horas às 16 horas e depois das 18 horas às 23 horas. Em um dia desses, cheguei a fazer 48 entregas. No último sábado, quando consegui encerrar o expediente já era meia-noite e meia. Acho que vou conseguir tirar uns R$ 8 mil neste mês.
Outro dia, o restaurante recebeu por telefone um pedido de uma moça que tinha dado positivo para o novo coronavírus. Ela disse que o pai dela buscaria na porta do apartamento para ela, mas me recusei a entregar mesmo assim. Sabe lá se ele não está contaminado também? O motoboy que acabou indo lá também estava revoltado, mas teve de entregar. A gente sabe que, embora não seja oficial, se você recusar a corrida porque o lugar é longe, porque a taxa está baixa ou por qualquer outro motivo, o aplicativo não vai apitar mais. É uma espécie de punição. Se é sua primeira corrida do dia, então, você está ferrado: não vai ganhar nada!
Uma vez saiu para mim uma entrega em um hospital, para uma médica. Ela estava com uma cara de assustada! As pessoas estavam distantes umas das outras e nem conversavam. Parecia mais um velório! Depois que saí de lá, coloquei álcool em meu corpo todo. Precaução, não é?
Todo dia, assim que chego em casa, entro no banho e lavo minha roupa. A gente tem contato com muita gente. Os aplicativos inventaram aquele negócio de entrega sem contato, mas isso não funciona. É só para enganar os clientes. Quando chego ao restaurante, tenho de colocar o pedido na bag, vou passando em outros estabelecimentos e lotando a bolsa para fazer as entregas. Quando chego à casa da pessoa, eu preciso encontrar o pedido dela ali dentro. É lógico que eu encosto na embalagem!
Se eu tivesse outra fonte de renda, com toda a certeza pararia de entregar. Nós, motoboys, estamos na linha de frente, ganhamos pouco e ainda somos tratados com desprezo.
Rafael dos Santos, 37 anos, motoboy


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