A jornalista Vivian Oswald escreve, de Londres, um bom relato sobre a forma dos ingleses de lidar com a atual crise provocada pelo coronavírus. Vale a leitura da matéria publicada na revista Época, na íntegra, abaixo.
“Não invente desculpa para ir ao pub, guarde a desculpa para quando voltar de lá.” Esse é apenas um dos tantos ditados criados em torno da cultura das “public houses”, os bons e velhos pubs britânicos, uma paixão nacional. Suas origens remontam a quase 2 mil anos atrás, quando da ocupação dos romanos. Eles trouxeram o conceito das tabernas, que, dizem, inspiraram essa verdadeira instituição britânica espalhada por suas ilhas ainda na Idade Média. Um em cada quatro adultos vai ao pub pelo menos uma vez por semana. Pode-se dizer que o expediente acabou no centro de Londres pelo burburinho animado dos frequentadores assíduos com suas “pints” (a medida britânica por excelência para os copos de cerveja, de 568 mililitros) no final da tarde, já do lado de fora do estabelecimento. Chova ou faça sol. Diz-se que não há vilarejo que não tenha o seu. É ali que as pessoas comemoram os bons momentos da vida e lamentam os maus, assistem aos campeonatos de futebol e rúgbi ou simplesmente esquecem os problemas cotidianos.
Mas a rotina dos pubs, como a do restante da economia do Reino Unido e da Europa, mudou radicalmente nos últimos dias. O primeiro-ministro, Boris Johnson, custou, mas recomendou que as pessoas evitem lugares fechados. Diferentemente do que aconteceu em outros países europeus, Johnson não chegou a proibir que estabelecimentos ficassem abertos. Mas o governo se sente cada vez mais pressionado pela população e poderá determinar o confinamento amplo muito em breve diante do agravamento da situação do novo coronavírus na Europa, que se tornou o epicentro da epidemia e superou a China em número de infectados e mortes. Especialistas, a classe política e os ingleses desconfiam da falta de celeridade das autoridades para cortar o contato social de uma vez por todas, considerando que, mesmo os países que se valeram dessa estratégia no continente não conseguiram conter a escalada do vírus. As escolas britânicas permaneciam abertas até o dia 18 — e só então o governo anunciou que as aulas seriam suspensas na sexta-feira 20, como já haviam feito a Escócia e o País de Gales. A Universidade de Oxford, em razão dos nove casos confirmados na cidade, suspendeu as aulas presenciais. Em Cambridge, foi acionado o “modo vermelho”, em que as aulas acontecerão apenas on-line e os testes estão adiados até segunda ordem.
Na semana passada, 229 cientistas enviaram à residência do premiê uma carta aberta em defesa de ações mais rigorosas para evitar a contaminação. Eles são contra a chamada “imunização de rebanho”, que estaria na base do plano de Johnson. A ideia é que, após 60% da população estar contaminada com o vírus, a maioria das pessoas se tornaria “vacinada” contra a doença. “Nós ainda temos chance/tempo para conter (a disseminação). Ou vamos apenas ficar rangendo os dentes enquanto esperamos que 250 mil pessoas morram?”, perguntou pelo Twitter Willem van Schaik, professor de infectologia da Universidade de Birmingham, um dos signatários da missiva.
Para o professor Mike Tildesley, da Universidade de Warwick, a estratégia do governo tem sido mal interpretada porque a tal imunidade de rebanho é uma consequência do contato entre as pessoas ao longo do tempo. Ele afirmou que o mais importante agora é tentar calibrar as medidas draconianas necessárias para trancar a população em casa com os estágios de contaminação. “Não adianta deixar todo mundo preso em casa agora se vai ser necessário manter as pessoas em quarentena por muitas semanas, talvez meses”, disse a ÉPOCA. Mas os próprios cidadãos começam a desconfiar da demora para que se imponha o isolamento como em outros países e já têm optado por trabalhar de casa e deixar de frequentar locais públicos. É por isso que, antes mesmo da determinação para que os pubs fechem suas portas, os proprietários do segmento já veem a crise do novo coronavírus como uma pá de cal na luta que travam há anos por sobrevivência. A especulação imobiliária britânica e os altos custos desses pequenos negócios, em geral familiares, levou 13 mil pubs a sumir do mapa entre 2001 e 2018. Depois de muitas campanhas, entre elas a que restringiu por lei a possibilidade de demolição desses estabelecimentos, em geral prédios da era vitoriana ou anteriores, conseguiu-se conter o movimento.
Pela primeira vez em quase uma década, houve um leve aumento de 0,8% no número de pubs abertos no Reino Unido. Em janeiro de 2020, eram 39.142 estabelecimentos em todo o país. Era o primeiro suspiro depois de muito tempo, segundo o cofundador da organização Protect Pubs, James Watson. “Quem se dedica a esse setor não quer ficar rico. Os custos são muito altos. As pessoas fazem isso por amor. Estamos há anos nos dedicando à causa de preservar os pubs, que são notadamente um símbolo da cultura britânica dentro e fora do país”, disse. Oito anos atrás, o The Seven Stars, em Dinton, estava prestes a sair do ramo. Foi o esforço da comunidade do vilarejo, que comprou o edifício histórico e colocou dois cidadãos locais para tocar os negócios, que manteve o pub aberto até hoje, ganhando sucessivos prêmios.
Na Itália, na Espanha, na França e na Bélgica, países oficialmente em confinamento total, bares e restaurantes já não funcionam. Na segunda-feira passada, foi a vez da França de anunciar o fechamento de todo e qualquer comércio que não fosse considerado indispensável, bares e restaurantes inclusive. A imagem do tradicional Café de Flore, em Saint-Germain-des-Prés, um dos símbolos parisienses, até segunda ordem ficará na memória dos velhos frequentadores e nas fotos dos turistas que se dispõem a pagar os preços salgados para comer um croissant e tomar um café no endereço que foi ponto de encontro da inteligência local na época de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre e jamais fechou suas portas — nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial. O badalado café já não deverá ostentar as mesas lotadas do lado de fora no início da primavera. Nem ele nem a famosa Brasserie Lipp, também em Saint-Germain-des-Près.
Entre os estrelados do Guia Michelin, o Guy Savoy, em Paris, fechou as portas e postou em suas redes uma mensagem de “até logo”. O chef francês que dá nome ao restaurante também gravou um vídeo pedindo resiliência e prestando solidariedade às famílias atingidas pelo vírus. O italiano Massimo Bottura, da Osteria Francescana, em Modena, ao fechar seus seis estabelecimentos, também resolveu burlar o confinamento publicando em suas redes sociais vídeos de receitas clássicas e fáceis de realizar, sob a hashtag #kitchenquarantine. No último episódio, em 17 de março, ensinou a fazer um molho bechamel para o prato “mac and cheese” (macarrão ao molho de queijo). Para aplacar os dias tristes vividos pelo povo italiano, Bottura recomenda, em tom esperançoso, ao menos que se agrade o paladar.
“Não invente desculpa para ir ao pub, guarde a desculpa para quando voltar de lá.” Esse é apenas um dos tantos ditados criados em torno da cultura das “public houses”, os bons e velhos pubs britânicos, uma paixão nacional. Suas origens remontam a quase 2 mil anos atrás, quando da ocupação dos romanos. Eles trouxeram o conceito das tabernas, que, dizem, inspiraram essa verdadeira instituição britânica espalhada por suas ilhas ainda na Idade Média. Um em cada quatro adultos vai ao pub pelo menos uma vez por semana. Pode-se dizer que o expediente acabou no centro de Londres pelo burburinho animado dos frequentadores assíduos com suas “pints” (a medida britânica por excelência para os copos de cerveja, de 568 mililitros) no final da tarde, já do lado de fora do estabelecimento. Chova ou faça sol. Diz-se que não há vilarejo que não tenha o seu. É ali que as pessoas comemoram os bons momentos da vida e lamentam os maus, assistem aos campeonatos de futebol e rúgbi ou simplesmente esquecem os problemas cotidianos.
Mas a rotina dos pubs, como a do restante da economia do Reino Unido e da Europa, mudou radicalmente nos últimos dias. O primeiro-ministro, Boris Johnson, custou, mas recomendou que as pessoas evitem lugares fechados. Diferentemente do que aconteceu em outros países europeus, Johnson não chegou a proibir que estabelecimentos ficassem abertos. Mas o governo se sente cada vez mais pressionado pela população e poderá determinar o confinamento amplo muito em breve diante do agravamento da situação do novo coronavírus na Europa, que se tornou o epicentro da epidemia e superou a China em número de infectados e mortes. Especialistas, a classe política e os ingleses desconfiam da falta de celeridade das autoridades para cortar o contato social de uma vez por todas, considerando que, mesmo os países que se valeram dessa estratégia no continente não conseguiram conter a escalada do vírus. As escolas britânicas permaneciam abertas até o dia 18 — e só então o governo anunciou que as aulas seriam suspensas na sexta-feira 20, como já haviam feito a Escócia e o País de Gales. A Universidade de Oxford, em razão dos nove casos confirmados na cidade, suspendeu as aulas presenciais. Em Cambridge, foi acionado o “modo vermelho”, em que as aulas acontecerão apenas on-line e os testes estão adiados até segunda ordem.
Na semana passada, 229 cientistas enviaram à residência do premiê uma carta aberta em defesa de ações mais rigorosas para evitar a contaminação. Eles são contra a chamada “imunização de rebanho”, que estaria na base do plano de Johnson. A ideia é que, após 60% da população estar contaminada com o vírus, a maioria das pessoas se tornaria “vacinada” contra a doença. “Nós ainda temos chance/tempo para conter (a disseminação). Ou vamos apenas ficar rangendo os dentes enquanto esperamos que 250 mil pessoas morram?”, perguntou pelo Twitter Willem van Schaik, professor de infectologia da Universidade de Birmingham, um dos signatários da missiva.
Para o professor Mike Tildesley, da Universidade de Warwick, a estratégia do governo tem sido mal interpretada porque a tal imunidade de rebanho é uma consequência do contato entre as pessoas ao longo do tempo. Ele afirmou que o mais importante agora é tentar calibrar as medidas draconianas necessárias para trancar a população em casa com os estágios de contaminação. “Não adianta deixar todo mundo preso em casa agora se vai ser necessário manter as pessoas em quarentena por muitas semanas, talvez meses”, disse a ÉPOCA. Mas os próprios cidadãos começam a desconfiar da demora para que se imponha o isolamento como em outros países e já têm optado por trabalhar de casa e deixar de frequentar locais públicos. É por isso que, antes mesmo da determinação para que os pubs fechem suas portas, os proprietários do segmento já veem a crise do novo coronavírus como uma pá de cal na luta que travam há anos por sobrevivência. A especulação imobiliária britânica e os altos custos desses pequenos negócios, em geral familiares, levou 13 mil pubs a sumir do mapa entre 2001 e 2018. Depois de muitas campanhas, entre elas a que restringiu por lei a possibilidade de demolição desses estabelecimentos, em geral prédios da era vitoriana ou anteriores, conseguiu-se conter o movimento.
Pela primeira vez em quase uma década, houve um leve aumento de 0,8% no número de pubs abertos no Reino Unido. Em janeiro de 2020, eram 39.142 estabelecimentos em todo o país. Era o primeiro suspiro depois de muito tempo, segundo o cofundador da organização Protect Pubs, James Watson. “Quem se dedica a esse setor não quer ficar rico. Os custos são muito altos. As pessoas fazem isso por amor. Estamos há anos nos dedicando à causa de preservar os pubs, que são notadamente um símbolo da cultura britânica dentro e fora do país”, disse. Oito anos atrás, o The Seven Stars, em Dinton, estava prestes a sair do ramo. Foi o esforço da comunidade do vilarejo, que comprou o edifício histórico e colocou dois cidadãos locais para tocar os negócios, que manteve o pub aberto até hoje, ganhando sucessivos prêmios.
Na Itália, na Espanha, na França e na Bélgica, países oficialmente em confinamento total, bares e restaurantes já não funcionam. Na segunda-feira passada, foi a vez da França de anunciar o fechamento de todo e qualquer comércio que não fosse considerado indispensável, bares e restaurantes inclusive. A imagem do tradicional Café de Flore, em Saint-Germain-des-Prés, um dos símbolos parisienses, até segunda ordem ficará na memória dos velhos frequentadores e nas fotos dos turistas que se dispõem a pagar os preços salgados para comer um croissant e tomar um café no endereço que foi ponto de encontro da inteligência local na época de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre e jamais fechou suas portas — nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial. O badalado café já não deverá ostentar as mesas lotadas do lado de fora no início da primavera. Nem ele nem a famosa Brasserie Lipp, também em Saint-Germain-des-Près.
Entre os estrelados do Guia Michelin, o Guy Savoy, em Paris, fechou as portas e postou em suas redes uma mensagem de “até logo”. O chef francês que dá nome ao restaurante também gravou um vídeo pedindo resiliência e prestando solidariedade às famílias atingidas pelo vírus. O italiano Massimo Bottura, da Osteria Francescana, em Modena, ao fechar seus seis estabelecimentos, também resolveu burlar o confinamento publicando em suas redes sociais vídeos de receitas clássicas e fáceis de realizar, sob a hashtag #kitchenquarantine. No último episódio, em 17 de março, ensinou a fazer um molho bechamel para o prato “mac and cheese” (macarrão ao molho de queijo). Para aplacar os dias tristes vividos pelo povo italiano, Bottura recomenda, em tom esperançoso, ao menos que se agrade o paladar.
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