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David Uip: “Combinar notícia falsa e saúde é criminoso”

Outra boa matéria publicada sexta-feira, 20/3, no Valor, traz o perfil de David Uip, ferrenho defensor do SUS e coordenador do comitê de combate ao coronavírus em São Paulo. Texto de Adriana Abujamra, vale a leitura.

O infectologista David Uip chegou para este jantar e cumprimentou a reportagem com beijo no rosto. Naquele mesmo dia a Organização Mundial de Saúde (OMS) havia declarado a pandemia do novo coronavírus, as bolsas levaram um tombo e os casos de infecção no Brasil começavam a se multiplicar. Era o alerta - a moléstia se alastrava por aqui.
“Beijo não vou tirar, sou afetivo”, disse ele, já sentado à sua mesa cativa, sob a frondosa figueira do Rubaiyat, no bairro paulistano dos Jardins. Mas com a escalada da crise “e com dor na alma”, Uip achou prudente abandonar o hábito, comentou ele, seis dias depois, em uma nova conversa com o Valor. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), no entanto, ignorou a pandemia e tomou uma decisão muito controversa. Estimulou e compareceu a manifestação pública no domingo. “As medidas deveriam valer para todo mundo, inclusive para o presidente.”
Com 67 anos, três stents e quatro horas de sono por noite, hábito adquirido nas duas décadas em que deu plantões em unidades de terapia intensiva (UTI), ele é freguês assíduo do restaurante. Amigo do proprietário, Uip e sua mulher, a socióloga Maria Teresa, têm até uma faca com seus nomes inscritos no metal.
O infectologista costuma passar as manhãs na Faculdade de Medicina do ABC, onde é professor e reitor. De lá segue para o Hospital Sírio-Libanês, depois para o consultório, de onde acabou de vir para este “À Mesa com o Valor”. Desde que assumiu o comitê de combate ao novo coronavírus em São Paulo, sua rotina está ainda mais frenética.
O coronavírus é um velho conhecido, responsável por 5% a 10% das infecções pulmonares no Brasil. Mas os microorganismos são espertos. Criam mutações e pegam as pessoas de surpresa, como agora. O Brasil, afirmou Uip, já enfrentou epidemias mais letais do que a covid-19, como H1N1, dengue e sarampo.
“São experiências duras, você sofre, aprende e amadurece”, disse ele, inclinando o corpo para a frente e cruzando as mãos sobre a mesa. Sua intenção ao falar sobre isso não é minimizar a crise, mas analisá-la em perspectiva.
Nos anos 1970 houve uma epidemia de meningite meningocócica. Famílias tiravam filhos da escola e fugiam para o interior com medo do surto. Na década seguinte foi a vez de HIV/aids. Uip fazia parte do grupo liderado por Vicente Amato Neto (1927-2018), que diagnosticou o primeiro caso no Brasil. Os médicos não sabiam o que causava a aids nem como o HIV era transmitido. Não existia remédios, e os doentes morriam. “Tem uma hora que você vê uma doença e fala: ‘E agora?’. Você não tem controle, não tem como medicar, e as pessoas estão morrendo. Perdi pacientes, amigos, parentes e a prepotência. Percebi claramente os limites do médico”, disse, enquanto ajeitava o guardanapo sobre o colo.
Quando surgiu a H1N1, em 2009, Uip era diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Nos quase cinco anos como secretário Estadual da Saúde, função que exerceu de 2013 a 2018 no governo de Geraldo Alckmin (PSDB), lidou com febre amarela, dengue, zika e chikungunya. “Não vejo muita novidade no novo coronavírus, não é diferente do resto. Pode ter mais transmissibilidade, atingir mais a faixa de vulneráveis, os mais velhos, mas é essa a história das epidemias.”
Na sua opinião, doença realmente inédita são as mentiras espalhadas em alta velocidade e com consequências devastadoras. Combinar notícia falsa e saúde, disse, é um ato criminoso para o qual a ciência desconhece antídoto. No Irã, “sabichões” da internet anunciaram que beber álcool puro era um santo remédio para a cura da moléstia. Resultado: 218 pessoas foram hospitalizadas e 44 morreram intoxicadas. Uma fotografia com corpos de chineses mortos espalhados pelas ruas foi amplamente compartilhada. “Quem olha se desespera. As pessoas entram em pânico.”
Há ainda o movimento antivacinas, apontado como um dos responsáveis pelo recente ressurgimento de casos de sarampo, que voltaram a crescer. A doença pode deixar sequelas e causar a morte. “É um desastre. É imperdoável.” Sua voz é tão baixa, quase a se perder no burburinho do salão, o que nos levou a buscar uma mesa mais afastada.
Depois de acomodar-se, Uip retomou o fio. As complicações da covid-19 têm afetado sobretudo os idosos. Entre as pessoas com mais de 80 anos, a letalidade pode passar de 15%. No caso dos jovens, a taxa é menor do que 0,5%. Pelos seus cálculos, 20% dos infectados terão que ser hospitalizados e 5% vão precisar de cuidado em UTI. “Hospital é só para quem tiver doença grave, senão você congestiona e desestrutura todo o sistema de saúde e coloca mais gente em risco”, advertiu.
A China construiu um hospital em dez dias para dar conta dos doentes. Na Itália, até agora o segundo país mais afetado e em quarentena por causa da pandemia, faltam leitos. Os médicos têm trabalhado no limite e têm que escolher quem vai morrer e quem vai viver. Estamos preparados? “São Paulo tem 101 hospitais estaduais. Sabe quantos no Rio de Janeiro? Zero! No Rio Grande do Sul? Dois. Não é por isso que não vai ter dificuldades em São Paulo, tudo tem limite, não existe sistema no mundo que dê conta.”
O infectologista é um ferrenho defensor do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado por ele o maior modelo de inclusão do país. “Sou fã. Tem problemas, falta de financiamento, o acesso é difícil, mas tem hospitais públicos com trabalho de arrepiar. Quem critica o SUS é porque nunca foi.”
O garçom apareceu com carpaccio de funghi, salada de alcachofra e dadinhos de tapioca e avisou que eram cortesia de Belarmino Iglesias Filho, dono do restaurante. Depois de esticar o braço para espetar um dadinho de tapioca, o médico falou sobre sua preocupação com a proteção dos profissionais da saúde. Os sintomas e as complicações do novo vírus são mais comuns em pessoas acima dos 50 anos. Embora mais suscetíveis a complicações causadas pelo vírus, os mais velhos são os mais experientes, portanto a ideia é protegê-los, não afastá-los do trabalho. No Emílio Ribas, disse, médicos com idade acima dos 55 anos representam 45% do quadro.
“Aí você faz o quê? Coloca apenas os jovens? Mas e quando eles ficarem doentes? Por isso digo: as medidas para conter a pandemia precisam ser muito bem elaboradas.” Dados recentes da OMS indicam taxa de letalidade de 2% a 3% dos casos confirmados. O infectologista disse acreditar que esses números são menores, já que milhares de pacientes portadores assintomáticos ou com sintomas leves simplesmente não entram nas estatísticas. “É duro de transmitir isso para as pessoas, mas tem que ter uma noção exata do tamanho do que você está enfrentando. Claro que qualquer morte é indesejada, mas no atual contexto são dados importantes.”
Uip recomenda que na aplicação dos novos testes seja dada prioridade a doentes graves, às clínicas Sentinela, aos profissionais de saúde e aos pesquisadores. Testar indiscriminadamente as pessoas, disse, além de representar um gasto excessivo de recursos públicos, não teria muita utilidade. “O que muda testar todo mundo se na prática não tem cura?”
A OMS pediu, na segunda-feira, testes para todos os casos suspeitos de coronavírus. A entidade afirma que testes em larga escala ainda são a melhor alternativa para conter a disseminação do novo coronavírus. “A declaração da OMS foi surpreendente”, afirmou Uip, pouco antes de entrar em uma reunião com um grupo de especialistas para discutir como o Brasil lidaria com a questão. “No mundo ideal, o recomendado é fazer testes com todo mundo e isolar em hospitais, mas no mundo real não é possível.”
Calcula-se que de 40% a 45% da população mundial será infectada, mas é preciso lembrar, observou Uip, que a história natural da doença será modificada assim que surgirem remédios e vacinas. Os primeiros medicamentos devem chegar no início de maio e podem ou não ser efetivos; já as vacinas, em cerca de um ano e meio.
 “O que quero dizer é: sempre foi assim. Você vai ter essa epidemia, ela vai durar por volta de quatro, cinco meses, vai arrefecer porque você esgota a população suscetível. A maioria se infecta e fica resistente ao vírus. Isso não quer dizer que não vão surgir outras epidemias. Estamos distantes de descobrir uma vacina que previna contra todos os vírus.”
Em meio à crise, pesquisadores brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, decifraram a sequência genética do novo coronavírus encontrado em amostra de paciente brasileiro infectado e disponibilizaram a descoberta para o resto do mundo. Em entrevista publicada no Valor, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que o Brasil não participará do desenvolvimento da vacina. Qual sua posição? “O sequenciamento foi feito em apenas 48 horas. É de arrepiar! A possibilidade de avançar na ciência é o lado positivo da pandemia. Que o governo avalie que não pode investir em vacinas neste momento, eu entendo, mas que a gente tem que participar, não tenho a menor dúvida.” Pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo estão desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O infectologista apontou os cozinheiros com chapéu na cozinha do Rubaiyat. Foi ali que preparou jantares para arrecadar verbas para suas ações sociais, como a Casa da Aids, dirigida por ele durante oito anos. Contava com o auxílio do ex-ministro de Educação Paulo Renato (1945-2011) e do médico e deputado federal José Aristodemo Pinotti (1934-2009). “O Paulo e o Pinotti eram exímios cozinheiros, eu só enrolava, era uma farsa”, lembrou o médico, rindo.
O garçom apareceu com o cardápio, mas Uip o dispensou. Escolheu o prato de sempre: chouriço e arroz Biro-Biro. “Sou tradicional.” Pé de valsa, o médico costumava sair para dançar sempre nos mesmos lugares, comer nos mesmos restaurantes e pedir a mesma comida. Mas, agora, por causa do ritmo de trabalho e das restrições a aglomerações para conter o novo coronavírus, muitas atividades têm se tornado cada vez mais inviáveis.
O governo federal, Estados e municípios, por exemplo, anunciaram diversas medidas para tentar conter a transmissão da doença no Brasil. Isso afeta escolas e universidades, transporte público, serviços de saúde, comércio, órgãos públicos e eventos.
Medidas drásticas impostas por outros países, como isolamento e quarentena obrigatória para toda a população, têm se mostrado eficazes para conter a evolução do surto. Frear a disseminação é uma maneira de evitar a sobrecarga no sistema de saúde. No entanto, Uip avaliou que essas ações são pouco factíveis em países pobres e que há uma série de questões que devem ser levadas em conta.
“Como isolar uma família que mora em um barraco na favela com um único cômodo? Com quem ficarão as crianças de uma mãe que precisa trabalhar, mas a escola está fechada? Com os avós, justamente os mais vulneráveis? Não pode.” Além disso, acrescentou, o fato de o Brasil ser um país de dimensões continentais também tem que ser levado em consideração. O novo coronavírus, diz, provavelmente não vai se espalhar da mesma forma por todos os Estados.
“Na hora que você para um monte de coisa, para a cadeia produtiva responsável pelos insumos, inclusive dos que precisam ser usados na saúde. Tudo isso precisa ser ponderado, portanto não é uma decisão simples”, disse. “Se você me perguntar se tenho segurança total de uma coisa, não tenho. Mas vou, a cada momento, avaliar todos os fatores de custo/benefício. Vai funcionar ou vamos causar um problema ainda maior? Agora, isolamento de caso positivo e quarentena para as pessoas que tiveram contato têm que fazer.” As medidas devem ser tomadas dia após dia e com cautela.
Convencer a população quanto à necessidade de prevenção nem sempre é tarefa fácil. Casos de doenças sexualmente transmissíveis, como o HIV/aids, sífilis, HPV e gonorreia, têm crescido “que é uma desgraça”. Os medicamentos que ajudam a conter as doenças não podem ser desculpa para as pessoas não usarem preservativos. “Nada tem garantia de 100%, tem que usar a camisinha.”
O infectologista narra o caso de um casal de médicos, esclarecidos, que decidiu colocar um terceiro na relação. Ninguém usou camisinha. “Cada um faz o que quiser. Não vai aí nenhuma crítica, o problema é a falta de prevenção.” No dia seguinte foram ao Emílio Ribas para tomar remédio e evitar contrair a doença. Resultado? Um ficou negativo e o outro, positivo. Uip disse que é comum ver casos de pessoas que misturam álcool, droga e sexo e chegam em seu consultório sem lembrar do que aconteceu na noite anterior.
“Coronavírus é uma situação que cai no seu colo e você tem que enfrentar. O resto eu me sinto incompetente. Falo de prevenção há 40 anos, minha vida inteira, e não consigo convencer as pessoas.” Muitos pais têm a crença de que seus filhos adolescentes simplesmente não fazem sexo, nem usam drogas. “Isso só na cabeça deles.” A mesma ingenuidade, disse, é acreditar que propor abstinência sexual possa ser uma política de saúde pública efetiva para evitar gravidez indesejada ou doenças sexualmente transmissíveis, como proposto pela ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos).
Pausa para a comida. “Hum, adoro arroz, por mim comeria tudo com arroz”, disse, antes de trazer o caso Tancredo Neves (1910-1985) à mesa. Na sua avaliação, as complicações de saúde do presidente antecedem a internação. Com 75 anos, já corria um alto risco ao chegar ao Hospital de Base de Brasília. Uip era da equipe de médicos que cuidou de Tancredo e assegura que ele nunca teve câncer nem diverticulite, mas um tumor benigno no intestino que tratava com automedicação. “Eu era muito jovem e me envolvi em um caso de repercussão que acabou dando errado. Foi uma loucura, o povo colocava a culpa nos médicos.” Um grupo deu murros e amassou seu carro, sua mulher saiu de casa e foi morar com os pais, com medo das ameaças, e Uip passou a andar com escolta da Polícia Militar.
Além da sucessão de erros de procedimentos e diagnóstico, os boletins médicos esconderam a gravidade do caso de Tancredo. Outros pacientes políticos de Uip foram tratados com transparência desde o princípio. É o caso do governador Mário Covas (1930-2001), que morreu em decorrência de câncer de bexiga, e de seu neto, o prefeito de São Paulo Bruno Covas (PSDB), com tumor na cárdia, região entre o esôfago e o estômago.
O médico e o governador eram amigos. Um dia Mário Covas telefonou para se queixar de um incômodo. Preocupado, Uip foi até o Palácio dos Bandeirantes e o alertou sobre a necessidade de investigar os sintomas. O governador teria então gritado para sua mulher, Lila: “O David só inventa doenças”. Depois, voltando para o médico, acrescentou: “David, isso só pode ser coisa do [Paulo] Maluf”.
“Ali começava uma luta dramática”, lembrou Uip. Com a piora do quadro, o governador chamou o médico e fez um pedido. “Veja até onde posso ir com dignidade.” Uip espetou um pedaço de bife e completou: “Ele foi respeitado. Alguém teve que se responsabilizar por condutas que não eram habituais. Um homem desses teria ido para a UTI, mas morreu como quis, no quarto, ao lado da família”.
Uip foi assessor especial do governo de Mário Covas e porta-voz da equipe médica que cuidou do governador. “Eu nunca tinha feito nada parecido.” Coube ao infectologista dar o diagnóstico de câncer a Bruno Covas e explicar a ele o que viria pela frente. Uip quis saber como o prefeito gostaria que ele agisse. “Conte tudo”, orientou o prefeito. “Bruno agiu com a mesma resiliência e transparência do avô.” O prefeito agora faz imunoterapia a cada três semanas e o médico disse acreditar que ele vai voltar a ter uma vida normal.
O médico afirmou que até hoje Zuzinha, como é conhecido Mário Covas Neto, diz que o governador estava preparando o infectologista para ser secretário. Uip já foi instado pelo PSDB para a política, para concorrer a um cargo eletivo, mas garante que não tem intenção de se candidatar. Ele foi o responsável pelo programa na área de saúde do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que terminou a corrida presidencial de 2018 em quarto lugar. “Faltou um cargo de ministro, eu me preparei para isso. Se o Alckmin tivesse ganho, talvez eu fosse. Mas não foi, paciência. Viro a chave.”
Quando terminou de comer, o médico descansou no prato o garfo e a faca cravada com seu nome. O que pouca gente sabe, disse, é que entre o David e o Uip existe o Everton, nome pelo qual sua mãe sempre se referiu ao primogênito. Everton é uma homenagem de sua mãe à cantora brasileira Leny Eversong (1920-1984). Gordinho e baixinho, características que lembravam a artista, o menino acabou virando motivo de chacota. Os colegas nunca lhe chamavam de David, mas de Leny Eversong. O médico emagreceu com a prática de esporte. Foi federado em basquete e presidente da atlética na faculdade.
Mas não fosse carregar o mesmo nome do pai, disse, talvez já tivesse morrido. Por insistência de sua filha, Uip concordou em fazer um seguro que cobrisse suas despesas caso tivesse alguma complicação e precisasse ficar sem trabalhar. Por causa disso, teve que se submeter a uma série de exames. Os resultados assustaram os médicos que pediram check-up ainda mais minucioso.
Na verdade, a seguradora confundiu seus exames com os que seu pai tinha feito no mesmo lugar. O erro foi providencial. Os novos testes mostraram que Uip tinha duas coronárias com 96% de obstrução e colocaram o infectologista na mesa de operação, de onde saiu com três stents. Meses depois seu pai foi diagnosticado com câncer e morreu. “Ele trocou a vida dele pela minha.”
O médico disse que o ritmo profissional frenético o impediu de acompanhar de perto o crescimento de Juliana, Carolina e Raphael, seus filhos, o oposto do que viveu ao lado do pai, sempre muito presente em sua vida. “Brinco que as duas coisas não dá. Ou você oferece conforto, ou companhia.” Quando David nasceu, o pai, que cursou apenas o ensino fundamental, estava desempregado. O casal e os três filhos dormiam todos no mesmo quarto. Eles viviam em uma edícula nos fundos da casa de seus avós maternos.
Um dia, jovem, Uip foi à primeira festa de sua vida. Como seu único sapato de sola de pneu estava furado, tomou emprestado um par de um amigo. Para quê? Ao voltar para casa, levou uma surra. “Isso é para você aprender a viver apenas com o que nós temos.” Com o tempo, o pai progrediu. De ajudante de caminhão chegou a sócio de uma empresa de transporte. Uip já tinha 17 anos.
Chegou a segunda rodada de café e a conta. Ao perceber que a refeição seria paga pelo jornal, Uip demonstrou certo desconforto. “Sou um cara sem preconceitos, mas acho que preciso me modernizar.” Ao fim desta entrevista, já passava da meia-noite. No caminho até a saída, Uip falou sobre o risco de ser contaminado. “Tenho 67 anos, três stents, mas vou parar justamente agora? Não há hipótese.”



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