Numa entrevista ao “podcast” da revista “Quatro Cinco Um”, que foi ao ar em abril, Amyr Klink relata a Paulo Werneck um experimento que fez durante a quarentena: tentar simular em terra a atmosfera que viveu ao cruzar o Oceano Atlântico a remo, em 1984. Com o velho barco da travessia pendurado numa estrutura geodésica no quintal de casa, em Paraty, o navegador achou que seria divertido lembrar por uma noite do balanço físico e da sensação de confinamento naquela “célula habitável” de 88 cm de altura, menos de um metro de largura e 2,20m de comprimento na qual dormiu, comeu e trabalhou por cem dias, escreve Michel Laub em sua coluna semanal no Valor, publicada às sextas-feiras. Continua abaixo.
“Quase fiquei louco lá dentro”, diz Amyr, que desceu do barco em menos de seis horas. Não por claustrofobia ou solidão, problemas que ele evidentemente não tem, e sim pela angústia de estar “parado”, conceito familiar a todos os que atravessamos esses também cem dias em que o mundo deixou de ter novidades - ou, pior, nos sufoca com um excesso de notícias trágicas cujo conjunto causa um efeito de anestesia, ou então uma ansiedade tão difusa que não encontramos chão para enfrentá-la.
Na travessia de 1984, ao contrário, os eventos que se sucederam - tempestades, perrengues com equipamentos, sprays de baleia, arco-íris de lua - apontavam para um sentido narrativo no tempo e no espaço. “É mais fácil enfrentar tubarões do que o tédio?”, pergunta Werneck. A resposta do entrevistado, que lidou bem com as aflições psicológicas durante o percurso, não deixa dúvida: “Eu sentia que estava construindo uma obra, indo para algum lugar, e essa sensação é muito gratificante”.
Por causa da entrevista à “Quatro Cinco Um”, resolvi voltar ao universo generoso de Amyr Klink, cujos relatos me ajudaram a enfrentar o pântano escuro da adolescência. Desta vez, porém, em um registro diverso: com uma série de outros livros na fila, resolvi aproveitar as muitas horas de tarefas domésticas do atual cotidiano na companhia do audiobook de “Cem Dias entre o Céu e o Mar”. Narrada pelo autor em variações discretas de ênfase, ironia e maravilhamento, num tom de relato oral com resquícios simpáticos de preciosismo literário (“ásperos visitantes”, “continental região”), misturando precisão técnica (“uma das conexões dos tanques de lastro se soltou”) e impressionismo (“o leme parecia uma vassoura assustada”), a história segue cheia de momentos curiosos, engraçados e emocionantes.
Talvez seja inevitável falar de “Cem Dias...” num tom utilitário, como se o que Amyr passou em alto mar tivesse algo a ensinar na dimensão menos épica de nossas faxinas de classe média isolada. Como romancista, tenho um instinto contrário a esse tipo de leitura, porque a melhor ficção - ou o melhor relato não ficcional - costuma fugir de discursos persuasivos como os de matriz religiosa, partidária ou moralista. É um preconceito tolo, no entanto, não ver numa experiência tão rara - e tão bem contada por alguém que deixa as conclusões para cada leitor - a possibilidade de um exemplo.
Não é à toa que Amyr virou um palestrante bem-sucedido no meio empresarial. A viagem de 1984 tem mais relação com conceitos caros a esse circuito - foco, perseverança - do que com uma aventura no sentido estrito do termo. Algumas descobertas decisivas a bordo, como a da roupa correta para remar ou o modo de tirar do casco os crustáceos que atraem tubarões, surgiram da observação de tarefas repetidas, enfadonhas. Os cem dias foram, na verdade, os anos nada improvisados que os precederam: o feito então inédito, que botou o navegador no Guinness, é fruto de um planejamento minucioso, obsessivo a ponto de reduzir ao máximo os efeitos bons e ruins do acaso, em itens como alimentação, orientação geográfica, design do barco.
O que Amyr teria a nos dizer, contudo, de um problema como a quarentena, cujo tamanho e falta de saídas a curto prazo pouco ou nada dependem de nós? Para além do encanto escapista da viagem, que nos transporta a um universo tão maior e mais interessante do que o da nossa casa, há algo no livro que nos faria atenuar a sensação de tempo perdido, de impotência diante do horror sanitário e social a que temos assistido nas últimas semanas?
Se é verdade que somos máquinas de sentido, como prova o fracasso da noite no barco pendurado em Paraty, claro que parte da batalha à nossa frente é individual, e nela é possível encontrar tarefas que enriqueçam a quarentena em termos profissionais, espirituais e afetivos - estudando, meditando, cuidando das pessoas queridas ao nosso redor físico e virtual.
Por outro lado, não temos como nos salvar no longo prazo sem algum tipo de mobilização coletiva. Ela começa na consciência de que o futuro é sempre reflexo do passado: assim como Amyr só pôde ter sucesso estudando detalhes de naufrágios anteriores, a evolução de técnicas marítimas que deveriam ou não ser usadas e assim por diante, o melhor cenário pós-covid depende de uma reflexão sobre o que nos trouxe até aqui - a série de desastres climáticos e políticos que nos puseram de joelhos diante de um vírus desconhecido.
Numa passagem de “Cem Dias...”, Amyr conta que os maiores desafios da viagem pouco tinham a ver com os “receios em relação ao mar ou à força física necessária para vencê-lo”. É uma declaração interessante, porque devolve à sua dimensão real atributos superestimados pela boçalidade do poder em 2020. Foi sua formação de economista, por exemplo, e não o voluntarismo vindo de uma suposta coragem que não se curva a nada - nem às leis da natureza, e portanto da ciência e da lógica -, o motor para ele vencer a arrebentação difícil de Lüderitz (Namíbia) e chegar inteiro nas areias quentes de Salvador.
O conhecimento é a melhor arma que sempre esteve e estará ao nosso alcance. É com ela que derrotaremos (tomara) a ignorância, a má-fé do banditismo que nos governa. “Navegar é a arte da precisão”, diz Amyr, ajustando uma velha frase também ajustada por Fernando Pessoa. “E viver é fundamental. O navegador não vaga a esmo.” Às vezes a lição mais óbvia é também a mais sábia.
Michel Laub, jornalista e autor dos romances “Diário da Queda” e “O Tribunal da Quinta-Feira”, escreve neste espaço quinzenalmente
“Quase fiquei louco lá dentro”, diz Amyr, que desceu do barco em menos de seis horas. Não por claustrofobia ou solidão, problemas que ele evidentemente não tem, e sim pela angústia de estar “parado”, conceito familiar a todos os que atravessamos esses também cem dias em que o mundo deixou de ter novidades - ou, pior, nos sufoca com um excesso de notícias trágicas cujo conjunto causa um efeito de anestesia, ou então uma ansiedade tão difusa que não encontramos chão para enfrentá-la.
Na travessia de 1984, ao contrário, os eventos que se sucederam - tempestades, perrengues com equipamentos, sprays de baleia, arco-íris de lua - apontavam para um sentido narrativo no tempo e no espaço. “É mais fácil enfrentar tubarões do que o tédio?”, pergunta Werneck. A resposta do entrevistado, que lidou bem com as aflições psicológicas durante o percurso, não deixa dúvida: “Eu sentia que estava construindo uma obra, indo para algum lugar, e essa sensação é muito gratificante”.
Por causa da entrevista à “Quatro Cinco Um”, resolvi voltar ao universo generoso de Amyr Klink, cujos relatos me ajudaram a enfrentar o pântano escuro da adolescência. Desta vez, porém, em um registro diverso: com uma série de outros livros na fila, resolvi aproveitar as muitas horas de tarefas domésticas do atual cotidiano na companhia do audiobook de “Cem Dias entre o Céu e o Mar”. Narrada pelo autor em variações discretas de ênfase, ironia e maravilhamento, num tom de relato oral com resquícios simpáticos de preciosismo literário (“ásperos visitantes”, “continental região”), misturando precisão técnica (“uma das conexões dos tanques de lastro se soltou”) e impressionismo (“o leme parecia uma vassoura assustada”), a história segue cheia de momentos curiosos, engraçados e emocionantes.
Talvez seja inevitável falar de “Cem Dias...” num tom utilitário, como se o que Amyr passou em alto mar tivesse algo a ensinar na dimensão menos épica de nossas faxinas de classe média isolada. Como romancista, tenho um instinto contrário a esse tipo de leitura, porque a melhor ficção - ou o melhor relato não ficcional - costuma fugir de discursos persuasivos como os de matriz religiosa, partidária ou moralista. É um preconceito tolo, no entanto, não ver numa experiência tão rara - e tão bem contada por alguém que deixa as conclusões para cada leitor - a possibilidade de um exemplo.
Não é à toa que Amyr virou um palestrante bem-sucedido no meio empresarial. A viagem de 1984 tem mais relação com conceitos caros a esse circuito - foco, perseverança - do que com uma aventura no sentido estrito do termo. Algumas descobertas decisivas a bordo, como a da roupa correta para remar ou o modo de tirar do casco os crustáceos que atraem tubarões, surgiram da observação de tarefas repetidas, enfadonhas. Os cem dias foram, na verdade, os anos nada improvisados que os precederam: o feito então inédito, que botou o navegador no Guinness, é fruto de um planejamento minucioso, obsessivo a ponto de reduzir ao máximo os efeitos bons e ruins do acaso, em itens como alimentação, orientação geográfica, design do barco.
O que Amyr teria a nos dizer, contudo, de um problema como a quarentena, cujo tamanho e falta de saídas a curto prazo pouco ou nada dependem de nós? Para além do encanto escapista da viagem, que nos transporta a um universo tão maior e mais interessante do que o da nossa casa, há algo no livro que nos faria atenuar a sensação de tempo perdido, de impotência diante do horror sanitário e social a que temos assistido nas últimas semanas?
Se é verdade que somos máquinas de sentido, como prova o fracasso da noite no barco pendurado em Paraty, claro que parte da batalha à nossa frente é individual, e nela é possível encontrar tarefas que enriqueçam a quarentena em termos profissionais, espirituais e afetivos - estudando, meditando, cuidando das pessoas queridas ao nosso redor físico e virtual.
Por outro lado, não temos como nos salvar no longo prazo sem algum tipo de mobilização coletiva. Ela começa na consciência de que o futuro é sempre reflexo do passado: assim como Amyr só pôde ter sucesso estudando detalhes de naufrágios anteriores, a evolução de técnicas marítimas que deveriam ou não ser usadas e assim por diante, o melhor cenário pós-covid depende de uma reflexão sobre o que nos trouxe até aqui - a série de desastres climáticos e políticos que nos puseram de joelhos diante de um vírus desconhecido.
Numa passagem de “Cem Dias...”, Amyr conta que os maiores desafios da viagem pouco tinham a ver com os “receios em relação ao mar ou à força física necessária para vencê-lo”. É uma declaração interessante, porque devolve à sua dimensão real atributos superestimados pela boçalidade do poder em 2020. Foi sua formação de economista, por exemplo, e não o voluntarismo vindo de uma suposta coragem que não se curva a nada - nem às leis da natureza, e portanto da ciência e da lógica -, o motor para ele vencer a arrebentação difícil de Lüderitz (Namíbia) e chegar inteiro nas areias quentes de Salvador.
O conhecimento é a melhor arma que sempre esteve e estará ao nosso alcance. É com ela que derrotaremos (tomara) a ignorância, a má-fé do banditismo que nos governa. “Navegar é a arte da precisão”, diz Amyr, ajustando uma velha frase também ajustada por Fernando Pessoa. “E viver é fundamental. O navegador não vaga a esmo.” Às vezes a lição mais óbvia é também a mais sábia.
Michel Laub, jornalista e autor dos romances “Diário da Queda” e “O Tribunal da Quinta-Feira”, escreve neste espaço quinzenalmente
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