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Chamada a atacar os que se manifestarem pela democracia, a PM baixará o pau?

A peste não valorizou enfermeiros e médicos. Nos países onde hoje a pandemia mata mais, as pessoas anônimas que salvam vidas foram para o segundo plano. Quem se sobressai são os profissionais da violência, aqueles que infundem medo e dor para manter a ordem. Os policiais. Em Minneapolis, a reviravolta na percepção pública se deu por obra e graça de Derek Chauvin, um tira de olhar vidrado. Com a mão no bolso, impassível, sereno até, ele calcou o joelho e pôs o peso do corpo sobre o pescoço de George Floyd. Fez isso até matá-lo. Uma cena que não se esquece, escreve o jornalista Mario Sergio Conti em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, publicada aos sábados. Texto de hoje, 6/6, vale muito a leitura, continua abaixo.

Já quem estava nas ruas americanas por certo não se esquecerá das noites seguintes. Multidões, jovens de todas as classes e cores, tiveram em dez dias uma vivência política equivalente a décadas de modorra parlamentar —a dúzias de eleições entorpecidas.
Quase uma centena de cidades foi tomada por passeatas, saques, correrias, sirenes e prisões.
Espontânea e radical, fruto da injustiça repisada cotidianamente, a revolta não teve pauta de reivindicações. Mas seu alvo foi cristalino: a polícia.
A polícia não existe para elucidar crimes. Em nenhum lugar do mundo. No Brasil, ela descobre apenas 8% dos autores de crimes de morte. Sob o tacão de Bolsonaro, contudo, o número de pessoas que a polícia mata aumentou. Chegou a 5.804 no ano passado.
A polícia existe para patrulhar, exigir documentos, promover blitze, supor gente ameaçadora e detê-la, intimar e intimidar. Exerce a força para garantir a ordem —seja no dia a dia, seja no lato sensu social e histórico. Pandemia ou não, a polícia é um pilar da sociedade.
Por isso, um signo maior da crise americana foi o fato de policiais terem se ajoelhado diante dos revoltosos. Tanto pareciam pedir perdão pela genuflexão assassina de Chauvin como imitavam astros negros que não se perfilam para o hino nacional. O signo alude à dissidência.
Nos Estados Unidos, a polícia é agente do racismo institucional. As estatísticas convergem: lá, quem é negro vê decuplicada a chance de ser assediado, humilhado e fichado por hienas fardadas. O esculacho meganha serve de antecâmara para a política do encarceramento em massa.
A polícia é uma forma histórica. Seu desenvolvimento desigual e combinado faz com que adquira contornos específicos em diferentes lugares. A globalização fez com que pipocassem protestos em Paris, Londres e Amsterdã. Contra o racismo e a polícia.
Houve nas últimas décadas a militarização da polícia. Porque a guerra agora é perpétua: guerra contra as drogas, contra o terror, contra imigrantes, contra perifas e favelas, contra fanáticos e insurgentes. A guerra hobbesiana de todos contra todos.
Os uniformes mostram que a polícia virou a vanguarda das Forças Armadas. Ela não usa máscaras para se proteger da peste. Blindados das botas aos capacetes, os policiais parecem cavaleiros medievais ou samurais. São guerreiros em defesa do status quo.
Os armamentos também testemunham o belicismo policial. Produto da Primeira Grande Guerra, a Convenção de Genebra proibiu há um século as armas químicas e a gás. Mas, com o orwelliano rótulo de “não letais”, o gás pimenta e o lacrimogêneo são usados à larga pela tigrada.
O mesmo ocorreu com os choques elétricos, instrumentos da predileção dos torturadores enaltecidos por Bolsonaro. Eles foram banidos das delegacias, mas se autoriza o uso de pistolas de “incapacitação neuromuscular”.
O arsenal pesado é atributo no Brasil da Polícia Militar. Cada vez mais, a PM parece uma tropa de choque monstruosa. Na teoria, ela é uma força federalizada de quase meio milhão de policiais, que responde aos governadores. Na prática, não é assim nem de longe.
Em 2016, PMs de diversos estados fizeram proteção ostensiva das manifestações pela destituição de Dilma Rousseff. E, há apenas três meses, policiais militares do Ceará, bolsonaristas de raiz, ocuparam quartéis e obrigaram o governador petista a fazer o que queriam.
Bolsonaro disse que, com todo mundo em casa devido à pandemia, é “facílimo” dar um golpe. Sua conversa sobre golpe de Estado não diz respeito a jogar a Constituição no lixo, não é papo de advogados, ainda que passe por isso.
A “manu militari” implica a mobilização da PM. Especificamente, pressupõe o uso de bombas, cassetetes, fuzis semiautomáticos, lança-granadas e caveirões. Para ferir, prender, quiçá matar.
Chamada a atacar os que se manifestarem pela democracia, a PM baixará o pau? Haverá policiais que se ajoelhem?
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


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