Ótima a ideia da editora Todavia de lançar livros curtos sobre o difícil momento político brasileiro. Marcos Nobre inaugura a série com seu “Ponto-Final”, um livro inteligente e fácil de ler. Os analistas políticos que se opõem a Jair Bolsonaro se dividem em duas posições. Uns pensam que ele é louco (aproximei-me dessa posição, quando sustentei que poderia ser afastado por interdição civil, como incapaz). Outros entendem que segue um método: haveria lógica em sua aparente loucura. Nobre está entre esses últimos. Entende que a tese da loucura (ou burrice) despolitiza Bolsonaro. Esquece que há um método no modo como ele transforma o adversário em inimigo, a política em guerra, escreve o professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro em resenha do livro de Marcos Nobre para o Valor, publicada sexta, 19/6.
Pois, se Bolsonaro é indiferente às mortes na pandemia, é porque vive a política como guerra, na qual a meta é matar. Coisa antiga, pré-democrática, pré-revoluções modernas, eu acrescentaria. Não governa para todo o povo, mas só para os “autênticos brasileiros”.
Para ele, governar não é abrir estradas (Washington Luís) nem escolas (o consenso democrático, 1995-2016): é multiplicar conflitos. “Candidato do colapso” (e presidente que adota “o caos como método”), o governo funciona, quando funciona, apesar dele. Daí que hoje, no Brasil, ninguém confie em ninguém: um Estado de guerra “hobbesiano”.
Ele começou o governo tendo três feudos: o repressivo, com Sergio Moro; o econômico, com Paulo Guedes; o produtivo, com Tereza Cristina. O primeiro da trinca se foi, e com ele os “lava-jatistas”; os outros balançam. Sustenta-se agora numa aliança de seus apoiadores fanáticos, uns 12% talvez, com o “partido militar” e o Centrão.
Seu enfraquecimento cresceu devido a seu descaso pela pandemia - o que se agravou depois da redação do livro, concluído em maio. Seu “crush” Donald Trump, que também negava a gravidade da covid-19, depois recuou e agora critica a tática bolsonarista diante da pandemia.
Mas, se Bolsonaro quer minar de dentro as instituições, se procura destruir o regime instaurado pela Constituição de 1988, não vejo como a possível morte de mais de 100 mil brasileiros o ajudará. Não parece racional. Na verdade, ele granjearia apoios, enfrentando-a, ao contrário do que está fazendo. Se continuar aumentando a mortandade, seu governo pode ser abreviado, o que, em maio, o autor não considerou provável, menos ainda próximo.
Com isso, volto à questão da loucura. Marcos Nobre defende a tese da não loucura presidencial, mediante análises argutas das ações de Bolsonaro que atendem a seus aliados, empresários, militares, PMs, fanáticos, ruralistas, evangélicos.
Convergem na destruição do país projetado pela Constituição de 1988. Ela foi nossa primeira Carta Magna a começar pelos direitos humanos, antes de descrever o aparelho de Estado. É nossa única Constituição programática, a única a dizer o que o Brasil quer ser - especialmente em seus artigos 1º (os fundamentos da República), 3º (seus objetivos, que incluem erradicar não só a miséria, mas a pobreza e todas as formas de discriminação), 4º (os princípios de nossas relações exteriores, incluindo a defesa dos direitos humanos e a integração latino-americana), 5º (direitos individuais e coletivos) e 7º (direitos trabalhistas).
Esses 131 incisos e um parágrafo que abrem a Constituição são odiados pelo atual governo, que mistura tudo como “comunismo”.
Mas, se Bolsonaro assim representa a aliança do obscurantismo anti-1789 e do capitalismo selvagem, o que inclui destruir ciência e ensino superior, é difícil entender para que Bolsonaro quis e quer o poder. Em apertada síntese: Bolsonaro pode ser hábil e mesmo racional nas ações, nos meios, no pequeno, que é onde tem sucesso - mas não nos fins, nas metas. Aqui pode estar a eventual loucura do presidente. Ele não se empenhou em nenhuma agenda no Parlamento, nem mesmo nas de sua trinca. Tudo o que quer é permitir 40 pontos na carteira de motorista?
Marcos Nobre diz que hoje a meta principal dele é proteger-se e aos filhos da Justiça. Mostra como entre 1995 e 2018 os governos tiveram apoio parlamentar protegendo os políticos da Justiça e lhes dando fundos públicos (Dilma Rousseff caiu porque não fez isso). A Lava-Jato pôs esse conúbio em xeque, mas a ironia com Moro é que Bolsonaro voltou com tudo a esse procedimento, antes de mais nada para proteger sua família. Há lógica, sim. Mas repito: com que fim?
O golpe de 1964 prontamente adotou a política econômica de Roberto Campos, impopular, mas que fazia sentido, na subordinação aos Estados Unidos; o golpe dentro do golpe, de 1968, teve em Delfim Netto o chefe de uma economia também racional, ainda que imposta pela força. Mas Bolsonaro? Que nem mesmo apoiou direito a trinca Guedes, Moro, Tereza Cristina, dos quais os dois últimos parecem ser algo racionais, e parece mais feliz com Damares Alves, Abraham Weintraub, Ernesto Araújo, Ricardo Sales, nenhum dos quais diz coisa com coisa.
Então, por que Bolsonaro quis o poder? Mera ambição, vaidade?
Não é impossível, mas Nobre não explora esse veio. Ora, a vaidade tem papel importante na história. Talvez tenha sido o grande motor das monarquias antigas. Curiosamente, o tema da vaidade, tão presente desde antes do Eclesiastes (“Vaidade das vaidades”, diz o autor bíblico) até o fim do Antigo Regime, hoje é - erradamente - ignorado pela ciência política e a psicologia, ficando relegado às revistas de celebridades. Mas era traço essencial das monarquias, dos faraós ao Rei Sol.
Entendo que, nas democracias, a vaidade do governante é mais limitada do que nas monarquias não constitucionais - talvez por isso não a percebamos. Mas, se for verdade o que diz “Fogo e Fúria”, de Michael Wolff - que Trump concorreu à Presidência querendo prestígio para seus negócios, não a Presidência -, então esse elemento psicológico ainda desempenha papel importante. Só que, para ser importante, precisa que haja poucos freios e contrapesos ao poder de Um.
Uma democracia forte não tolera Trump ou Bolsonaro - e a diferença entre os dois é, em parte, que os Estados Unidos têm instituições fortes, apesar de uma cultura política fraca, enquanto o Brasil as tem, ambas, frágeis. Daí que eu não possa excluir o grão de loucura na governança bolsonarista, infelizmente tolerado pelas instituições e pela cultura política brasileiras.
De maio para cá, “New York Times” e “Economist” questionaram se virá golpe, e o governo insinuou isso mais de uma vez. As coisas se agravaram. O impeachment é possível, mas difícil - diz Marcos Nobre. Exige muito entendimento prévio.
É preciso que as Forças Armadas não saiam humilhadas, o que, convenhamos, é um risco enorme, quando o desastre da covid-19 está nas mãos de militares despreparados (o que se agravou depois de concluído o livro). E também é necessário pacificar as relações entre o que chamaríamos PT e PSDB, mesmo que hoje não tenham mais esses nomes. Concordo, mas o tempo urge.
“Ponto-Final - A Guerra de Bolsonaro Contra a Democracia”
Marcos Nobre. Todavia, R$ 14,90 (digital)
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP e ex-ministro da Educação
Pois, se Bolsonaro é indiferente às mortes na pandemia, é porque vive a política como guerra, na qual a meta é matar. Coisa antiga, pré-democrática, pré-revoluções modernas, eu acrescentaria. Não governa para todo o povo, mas só para os “autênticos brasileiros”.
Para ele, governar não é abrir estradas (Washington Luís) nem escolas (o consenso democrático, 1995-2016): é multiplicar conflitos. “Candidato do colapso” (e presidente que adota “o caos como método”), o governo funciona, quando funciona, apesar dele. Daí que hoje, no Brasil, ninguém confie em ninguém: um Estado de guerra “hobbesiano”.
Ele começou o governo tendo três feudos: o repressivo, com Sergio Moro; o econômico, com Paulo Guedes; o produtivo, com Tereza Cristina. O primeiro da trinca se foi, e com ele os “lava-jatistas”; os outros balançam. Sustenta-se agora numa aliança de seus apoiadores fanáticos, uns 12% talvez, com o “partido militar” e o Centrão.
Seu enfraquecimento cresceu devido a seu descaso pela pandemia - o que se agravou depois da redação do livro, concluído em maio. Seu “crush” Donald Trump, que também negava a gravidade da covid-19, depois recuou e agora critica a tática bolsonarista diante da pandemia.
Mas, se Bolsonaro quer minar de dentro as instituições, se procura destruir o regime instaurado pela Constituição de 1988, não vejo como a possível morte de mais de 100 mil brasileiros o ajudará. Não parece racional. Na verdade, ele granjearia apoios, enfrentando-a, ao contrário do que está fazendo. Se continuar aumentando a mortandade, seu governo pode ser abreviado, o que, em maio, o autor não considerou provável, menos ainda próximo.
Com isso, volto à questão da loucura. Marcos Nobre defende a tese da não loucura presidencial, mediante análises argutas das ações de Bolsonaro que atendem a seus aliados, empresários, militares, PMs, fanáticos, ruralistas, evangélicos.
Convergem na destruição do país projetado pela Constituição de 1988. Ela foi nossa primeira Carta Magna a começar pelos direitos humanos, antes de descrever o aparelho de Estado. É nossa única Constituição programática, a única a dizer o que o Brasil quer ser - especialmente em seus artigos 1º (os fundamentos da República), 3º (seus objetivos, que incluem erradicar não só a miséria, mas a pobreza e todas as formas de discriminação), 4º (os princípios de nossas relações exteriores, incluindo a defesa dos direitos humanos e a integração latino-americana), 5º (direitos individuais e coletivos) e 7º (direitos trabalhistas).
Esses 131 incisos e um parágrafo que abrem a Constituição são odiados pelo atual governo, que mistura tudo como “comunismo”.
Mas, se Bolsonaro assim representa a aliança do obscurantismo anti-1789 e do capitalismo selvagem, o que inclui destruir ciência e ensino superior, é difícil entender para que Bolsonaro quis e quer o poder. Em apertada síntese: Bolsonaro pode ser hábil e mesmo racional nas ações, nos meios, no pequeno, que é onde tem sucesso - mas não nos fins, nas metas. Aqui pode estar a eventual loucura do presidente. Ele não se empenhou em nenhuma agenda no Parlamento, nem mesmo nas de sua trinca. Tudo o que quer é permitir 40 pontos na carteira de motorista?
Marcos Nobre diz que hoje a meta principal dele é proteger-se e aos filhos da Justiça. Mostra como entre 1995 e 2018 os governos tiveram apoio parlamentar protegendo os políticos da Justiça e lhes dando fundos públicos (Dilma Rousseff caiu porque não fez isso). A Lava-Jato pôs esse conúbio em xeque, mas a ironia com Moro é que Bolsonaro voltou com tudo a esse procedimento, antes de mais nada para proteger sua família. Há lógica, sim. Mas repito: com que fim?
O golpe de 1964 prontamente adotou a política econômica de Roberto Campos, impopular, mas que fazia sentido, na subordinação aos Estados Unidos; o golpe dentro do golpe, de 1968, teve em Delfim Netto o chefe de uma economia também racional, ainda que imposta pela força. Mas Bolsonaro? Que nem mesmo apoiou direito a trinca Guedes, Moro, Tereza Cristina, dos quais os dois últimos parecem ser algo racionais, e parece mais feliz com Damares Alves, Abraham Weintraub, Ernesto Araújo, Ricardo Sales, nenhum dos quais diz coisa com coisa.
Então, por que Bolsonaro quis o poder? Mera ambição, vaidade?
Não é impossível, mas Nobre não explora esse veio. Ora, a vaidade tem papel importante na história. Talvez tenha sido o grande motor das monarquias antigas. Curiosamente, o tema da vaidade, tão presente desde antes do Eclesiastes (“Vaidade das vaidades”, diz o autor bíblico) até o fim do Antigo Regime, hoje é - erradamente - ignorado pela ciência política e a psicologia, ficando relegado às revistas de celebridades. Mas era traço essencial das monarquias, dos faraós ao Rei Sol.
Entendo que, nas democracias, a vaidade do governante é mais limitada do que nas monarquias não constitucionais - talvez por isso não a percebamos. Mas, se for verdade o que diz “Fogo e Fúria”, de Michael Wolff - que Trump concorreu à Presidência querendo prestígio para seus negócios, não a Presidência -, então esse elemento psicológico ainda desempenha papel importante. Só que, para ser importante, precisa que haja poucos freios e contrapesos ao poder de Um.
Uma democracia forte não tolera Trump ou Bolsonaro - e a diferença entre os dois é, em parte, que os Estados Unidos têm instituições fortes, apesar de uma cultura política fraca, enquanto o Brasil as tem, ambas, frágeis. Daí que eu não possa excluir o grão de loucura na governança bolsonarista, infelizmente tolerado pelas instituições e pela cultura política brasileiras.
De maio para cá, “New York Times” e “Economist” questionaram se virá golpe, e o governo insinuou isso mais de uma vez. As coisas se agravaram. O impeachment é possível, mas difícil - diz Marcos Nobre. Exige muito entendimento prévio.
É preciso que as Forças Armadas não saiam humilhadas, o que, convenhamos, é um risco enorme, quando o desastre da covid-19 está nas mãos de militares despreparados (o que se agravou depois de concluído o livro). E também é necessário pacificar as relações entre o que chamaríamos PT e PSDB, mesmo que hoje não tenham mais esses nomes. Concordo, mas o tempo urge.
“Ponto-Final - A Guerra de Bolsonaro Contra a Democracia”
Marcos Nobre. Todavia, R$ 14,90 (digital)
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP e ex-ministro da Educação
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