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Mario Sergio Conti: em conto inédito, um Hemingway que ainda não parodiava a si mesmo

Quem está morto sempre aparece. Mormente se o morto se chama Ernest Hemingway. Ele legou baús abarrotados de rascunhos e tentativas mal ajambradas, de papéis velhos cobertos de palavras curtas e conectivos bem enfileirados e orações em ordem direta e repetições em ordem unida. Seus descendentes lhe herdaram também o tino comercial. O que ele chamou de “o troço sobre Paris” —e não publicou— transformou-se postumamente em “Paris É uma Festa”, o título nacional de “A Moveable Feast”. Idem para o troço sobre a corrente do Golfo, que virou “Ilhas da Corrente”, escreve o jornalista em sua coluna semanal na Folha, que sai aos sábados. Vale a leitura!

Saíram ainda contos com Nick Adams, reportagens desconjuntadas e, contra seu desejo explícito e eloquente, sua infeliz correspondência. Sôfregos e vulgares, os herdeiros tiveram o desplante de lançar peças de cama, mesa e banho inspiradas em suas andanças afro-cubanas.
No mês que vem, enfim, o infatigável espólio de Hemingway lançará uma edição de luxo de “O Velho e o Mar”, seu livro mais conhecido, citado quando lhe deram o prêmio Nobel. Com capa vintage, ela será turbinada por um escrito inédito, publicado na New Yorker desta semana.
Datilografado, com emendas à mão de Hemingway, e sem título, ele foi encontrado entre os papéis do escritor depositados na Biblioteca Kennedy, em Boston, e entregue ao seu neto Seán, que logo decidiu lançá-lo.
Patrick, o segundo filho de Hemingway, batizou-o com o título de “Pursuit as Happiness”. Ele se justificou com uma explicação tortuosa: esse é o nome da quarta parte de “As Verdes Colinas da África”, relato de um safári que o escritor fez na Tanzânia em 1933.
O título seria apropriado porque, como o livro africano, “Pursuit as Happiness” também narra uma caçada. Só que agora Hemingway estava no encalço de outro animal, um gigantesco marlim que, no mesmo ano de 1933, ele teria perseguido pelas costas de Cuba.
Derradeira tortuosidade: o título anexado ao texto alude à Declaração da Independência dos Estados Unidos. Ela afirma que são três os direitos humanos: à vida, à liberdade e à “pursuit of happiness” —à busca da felicidade. A satisfação plena estaria em perseguir, em caçar; e não em achar e matar.
Tudo isso soa um tanto forçado, marketing mal disfarçado de mais uma abobrinha da mal cheirosa xepa Hemingway. É preciso, pois, ler para crer: “Pursuit as Happiness” vale o escrito. Ele propicia o reencontro com a prosa de um autor fora de moda tanto no espírito como na letra.
No espírito: o mundo de Hemingway é o de filés sangrando; de daiquiris servidos por mestiços dóceis; de beldades lânguidas recostadas em tendas na savana; de tiros sem remorso em feras majestosas; do balé de toureiros esguios diante da força selvagem da carne.
O macho branco e predador ficou algo anacrônico. A sensibilidade do público da literatura contemporânea foi no sentido oposto ao dos heróis de Hemingway. Se antes eles eram viris, silenciosos e sábios, agora são tidos por violentos, depressivos, imperialistas.
Na letra: sua escrita está colada à experiência direta; as ações em estado bruto e burro; ao gosto pelo epidérmico. A ausência de orações subordinadas expressa a recusa ao raciocínio e a nuances. Viciosamente, seu estilo remete ao próprio Hemingway, a seus maneirismos e preconceitos.
Todos esses senões literários foram apontados com Hemingway ainda em vida. Em ensaios de argúcia e crueldade exemplares, Dwight Macdonald notou que Hemingway passara a parodiar a si mesmo —seja no estilo ou na atitude. Era uma celebridade que escrevia como tal.
O ápice do vazio seria “O Velho e o Mar”, relato flácido da pesca de um marlim monstruoso por Santiago, o pobre protagonista. Publicado na maior das revistas ilustradas, a Life, o relato era para Dwight Macdonald o suprassumo do abastardamento, o “midcult”, a meia-boca vulgar.
Pois bem. “Pursuit as Happiness”, por ser curto e concentrado, por estar livre da pretensão a uma simbologia profunda, não padece desses males. Sua construção é tão hábil que até seu neto Seán não sabe dizer se ele é ficção ou não.
O narrador e protagonista se chama Ernest Hemingway. O dono do barco no qual pesca é Joe —e o escritor saía para o mar em Cuba com um amigo com o mesmo apelido. O imediato é Gutierrez, um marinheiro com quem também conviveu nos anos 1930.
Os três passam dias, semanas, meses atrás de um místico marlim. Conseguem capturá-lo e aí, então... Uma das funções da literatura é mostrar que há situações cujo sentido nos escapará para sempre.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



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