Nova tradução de “Brás Cubas” para o inglês recém-lançada pela Penguin Classics é bem recebida no mercado americano, escreve Marina Della Valle em resenha para o Valor, publicada dia 26/6, íntegra abaixo.
No último dia 3, um artigo na prestigiosa revista “The New Yorker” chamou atenção dos leitores brasileiros: o escritor americano Dave Eggers, autor de “O Que É o Quê” e “Zeitoun”, falava da redescoberta de “um dos livros mais espirituosos já escritos” - a saber, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, obra central de Machado de Assis (1839-1908). Ou melhor, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, tradução de Flora Thomson-DeVeaux, lançada um dia antes pelo selo Penguin Classics, que traz o texto de Eggers como introdução.
Flora, de 28 anos, nativa de Charlottesville, no Estado americano de Virginia, e moradora do Rio desde 2017, ficou feliz com a boa recepção da tradução, mas percebeu que ela era maior do que esperava quando amigos começaram a dizer que não conseguiam comprar o livro em lojas on-line. O estoque logo foi reposto, mas o interesse não esmaeceu: dez dias depois, o livro estava na terceira tiragem, segundo a tradutora, e no terceiro lugar no ranking de literatura latino-americana e caribenha da Amazon, atrás de dois livros de Gabriel García Márquez (1927-2014).
É a primeira edição de “Brás Cubas” anotada em inglês, e foi feita por Flora como parte de seu doutorado em estudos portugueses e brasileiros na Brown University. O encontro com Machado, especificamente com “Brás Cubas”, se deu aos 18 anos, na graduação em Princeton. “Aquelas imagens, aquela linguagem, aquele humor, me pegaram muito”, relembra Flora, em um português muito fluente, com um leve sotaque carioca. “Não parecia que era do século XIX. Agora fico tentando mostrar o quanto ele é do século XIX”, ri. Eggers também faz questão de destacar o frescor e a inventividade dessa obra de 1881.
O encontro com o ofício da tradução também aconteceu ainda durante a graduação, em Princeton, ao traduzir trechos da biografia de Carmen Miranda (1909-1955) escrita por Ruy Castro para uma pesquisadora que estava na universidade. Já o trabalho de tradução das obras do “Bruxo do Cosme Velho” começou com “Machado de Assis: Por uma Poética da Emulação”, de João Cezar de Castro Rocha, lançado em inglês em 2015.
“Eu sabia que os romances de Machado estavam traduzidos para o inglês, assim como boa parte dos contos, então pensei que teria apenas o trabalho de procurar esses trechos já traduzidos quando fossem citados”, diz Flora. Não foi bem assim. “O livro acaba citando muita coisa que não tinha sido traduzida, crônicas, correspondências, poesia. Eu me vi obrigada a traduzir Machado, ainda que em pedacinhos.”
A escolha por tradução e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi afetiva - afinal, há muitas traduções de Machado de Assis para o inglês, que conquistaram leitores famosos na comunidade anglófona, como Susan Sontag (1933-2004) e Harold Bloom (1930-2019) - este último classificou o autor brasileiro como “o maior literato negro da história da literatura ocidental”. No entanto, o “Bruxo do Cosme Velho” nunca alcançou um público maior de leitores falantes do inglês como outros latino-americanos como García Márquez e Jorge Luis Borges (1899-1986).
Não foi por falta de traduções. Alvo de uma série de lançamentos nos últimos anos, a obra de Machado está bem representada na língua de Shakespeare. Só “Brás Cubas” teve três traduções publicadas antes da de Flora - examinadas por ela em sua tese de doutorado, ainda não publicada. No último dia 16, a Liveright, braço da W.W. Norton & Company, lançou mais uma tradução do clássico, assinada por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, dupla que traduziu também os contos de Machado para a mesma editora, além de outros trabalhos do autor.
Diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts sediada no Rio de Janeiro, Flora fez a maior parte da tradução de “Brás Cubas” vivendo na mesma cidade que tanto inspirou Machado. Pensou que iria trabalhar com materiais de pesquisa eletrônicos, mas terminou com uma coleção de dicionários antigos, de papel. “Eu viajei no tempo por meio desses dicionários”, conta ela, que publicou textos derivados de suas pesquisas e descobertas ao longo da tradução em publicações brasileiras, como a revista “Piauí”.
Um exemplo foi o termo “calabouço”, que aparece quando Brás fala de seu cunhado, Cotrim. De acordo com o protagonista, Cotrim não era bárbaro como acusavam os inimigos, e “o único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”. Sem entender bem o uso de “calabouço” no trecho, começou a pesquisar o termo. Encontrou uma pista no “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, que registra que o calabouço, no morro do Castelo, era uma casa pública para castigo de escravos. “Isso acabou me jogando para toda uma historiografia sobre o lugar”, conta. A descoberta dessa peça na engrenagem da escravidão no Brasil fez com que Flora se voltasse para o país natal. “Por fim me perguntei se tinha existido algo parecido nos Estados Unidos - e tinha”, diz.
Enquanto esteve mergulhada na tradução e nas pesquisas que a tarefa exigiu, Flora não procurou nenhuma editora a respeito do trabalho. “Quis ter o tempo necessário, cortar o cordão umbilical só quando achasse que devia cortar”, diz. Quando decidiu negociar uma publicação, não precisou insistir muito. “A Penguin mordeu a isca. Dei muita sorte, pois acreditaram no projeto.”
Em sua introdução à tradução, Flora escreve que toda geração anglófona parece ter um “momento Machado”, embora o autor jamais tenha encontrado um lugar naquele cânon. Eggers afirma que “Brás Cubas”, apesar de ser uma obra-prima, não foi lido por “quase nenhum” falante do inglês do século XXI “for not good reason at all”, sem motivos - ele mesmo admite que o leu pela primeira vez apenas no ano passado. A repercussão do lançamento, neste primeiro momento, parece boa. Flora, que passou a usar o Twitter para divulgar o livro, diz que percebeu algo diferente quando uma postagem sobre o lançamento alcançou 30 mil “likes”, coisa que o próprio Brás Cubas, que calculou os leitores em cinco, teria achado surpreendente. Será este o “momento Machado” desta geração?
Marina Della Valle é jornalista e tradutora, doutora em estudos linguísticos e literários em inglês pela Universidade de São Paulo
No último dia 3, um artigo na prestigiosa revista “The New Yorker” chamou atenção dos leitores brasileiros: o escritor americano Dave Eggers, autor de “O Que É o Quê” e “Zeitoun”, falava da redescoberta de “um dos livros mais espirituosos já escritos” - a saber, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, obra central de Machado de Assis (1839-1908). Ou melhor, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, tradução de Flora Thomson-DeVeaux, lançada um dia antes pelo selo Penguin Classics, que traz o texto de Eggers como introdução.
Flora, de 28 anos, nativa de Charlottesville, no Estado americano de Virginia, e moradora do Rio desde 2017, ficou feliz com a boa recepção da tradução, mas percebeu que ela era maior do que esperava quando amigos começaram a dizer que não conseguiam comprar o livro em lojas on-line. O estoque logo foi reposto, mas o interesse não esmaeceu: dez dias depois, o livro estava na terceira tiragem, segundo a tradutora, e no terceiro lugar no ranking de literatura latino-americana e caribenha da Amazon, atrás de dois livros de Gabriel García Márquez (1927-2014).
É a primeira edição de “Brás Cubas” anotada em inglês, e foi feita por Flora como parte de seu doutorado em estudos portugueses e brasileiros na Brown University. O encontro com Machado, especificamente com “Brás Cubas”, se deu aos 18 anos, na graduação em Princeton. “Aquelas imagens, aquela linguagem, aquele humor, me pegaram muito”, relembra Flora, em um português muito fluente, com um leve sotaque carioca. “Não parecia que era do século XIX. Agora fico tentando mostrar o quanto ele é do século XIX”, ri. Eggers também faz questão de destacar o frescor e a inventividade dessa obra de 1881.
O encontro com o ofício da tradução também aconteceu ainda durante a graduação, em Princeton, ao traduzir trechos da biografia de Carmen Miranda (1909-1955) escrita por Ruy Castro para uma pesquisadora que estava na universidade. Já o trabalho de tradução das obras do “Bruxo do Cosme Velho” começou com “Machado de Assis: Por uma Poética da Emulação”, de João Cezar de Castro Rocha, lançado em inglês em 2015.
“Eu sabia que os romances de Machado estavam traduzidos para o inglês, assim como boa parte dos contos, então pensei que teria apenas o trabalho de procurar esses trechos já traduzidos quando fossem citados”, diz Flora. Não foi bem assim. “O livro acaba citando muita coisa que não tinha sido traduzida, crônicas, correspondências, poesia. Eu me vi obrigada a traduzir Machado, ainda que em pedacinhos.”
A escolha por tradução e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi afetiva - afinal, há muitas traduções de Machado de Assis para o inglês, que conquistaram leitores famosos na comunidade anglófona, como Susan Sontag (1933-2004) e Harold Bloom (1930-2019) - este último classificou o autor brasileiro como “o maior literato negro da história da literatura ocidental”. No entanto, o “Bruxo do Cosme Velho” nunca alcançou um público maior de leitores falantes do inglês como outros latino-americanos como García Márquez e Jorge Luis Borges (1899-1986).
Não foi por falta de traduções. Alvo de uma série de lançamentos nos últimos anos, a obra de Machado está bem representada na língua de Shakespeare. Só “Brás Cubas” teve três traduções publicadas antes da de Flora - examinadas por ela em sua tese de doutorado, ainda não publicada. No último dia 16, a Liveright, braço da W.W. Norton & Company, lançou mais uma tradução do clássico, assinada por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, dupla que traduziu também os contos de Machado para a mesma editora, além de outros trabalhos do autor.
Diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts sediada no Rio de Janeiro, Flora fez a maior parte da tradução de “Brás Cubas” vivendo na mesma cidade que tanto inspirou Machado. Pensou que iria trabalhar com materiais de pesquisa eletrônicos, mas terminou com uma coleção de dicionários antigos, de papel. “Eu viajei no tempo por meio desses dicionários”, conta ela, que publicou textos derivados de suas pesquisas e descobertas ao longo da tradução em publicações brasileiras, como a revista “Piauí”.
Um exemplo foi o termo “calabouço”, que aparece quando Brás fala de seu cunhado, Cotrim. De acordo com o protagonista, Cotrim não era bárbaro como acusavam os inimigos, e “o único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”. Sem entender bem o uso de “calabouço” no trecho, começou a pesquisar o termo. Encontrou uma pista no “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, que registra que o calabouço, no morro do Castelo, era uma casa pública para castigo de escravos. “Isso acabou me jogando para toda uma historiografia sobre o lugar”, conta. A descoberta dessa peça na engrenagem da escravidão no Brasil fez com que Flora se voltasse para o país natal. “Por fim me perguntei se tinha existido algo parecido nos Estados Unidos - e tinha”, diz.
Enquanto esteve mergulhada na tradução e nas pesquisas que a tarefa exigiu, Flora não procurou nenhuma editora a respeito do trabalho. “Quis ter o tempo necessário, cortar o cordão umbilical só quando achasse que devia cortar”, diz. Quando decidiu negociar uma publicação, não precisou insistir muito. “A Penguin mordeu a isca. Dei muita sorte, pois acreditaram no projeto.”
Em sua introdução à tradução, Flora escreve que toda geração anglófona parece ter um “momento Machado”, embora o autor jamais tenha encontrado um lugar naquele cânon. Eggers afirma que “Brás Cubas”, apesar de ser uma obra-prima, não foi lido por “quase nenhum” falante do inglês do século XXI “for not good reason at all”, sem motivos - ele mesmo admite que o leu pela primeira vez apenas no ano passado. A repercussão do lançamento, neste primeiro momento, parece boa. Flora, que passou a usar o Twitter para divulgar o livro, diz que percebeu algo diferente quando uma postagem sobre o lançamento alcançou 30 mil “likes”, coisa que o próprio Brás Cubas, que calculou os leitores em cinco, teria achado surpreendente. Será este o “momento Machado” desta geração?
Marina Della Valle é jornalista e tradutora, doutora em estudos linguísticos e literários em inglês pela Universidade de São Paulo
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