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César Felício: o brasileiro, um apaixonado pelas redes


É possível imaginar o Brasil como um dos países mais tolerantes do mundo? A resposta é sim, de acordo com a pesquisa “Democracias sob Tensão”, divulgada na edição de anteontem pelo Valor. A leitura completa do levantamento feito em 42 países, com dados recolhidos no fim do ano passado permite chegar a esta conclusão, o que é mais sugestivo do deplorável estado da convivência com os diferentes que o mundo se encontra do que revelador sobre o caso brasileiro. Afinal, se é tolerante o Brasil em que neopentecostais armados atacam terreiros de candomblé, como noticiou recentemente o “Washington Post”, é de se imaginar o que se passa alhures.
Segundo o levantamento, o Brasil é o país com o maior percentual de entrevistados que afirma não se incomodar com pessoas que tenham opiniões políticas diferentes das suas: 59%, ante 47% da média global. Também é o que aparece em primeiro quando a pergunta é sobre o incômodo em relação a posições religiosas diferentes das próprias. Dos brasileiros, 55% diz não se importar, na França este índice é 38%.
É alto também, inferior apenas ao observado no Japão, o percentual de brasileiros que não ficam perturbados com pessoas com orientações sexuais diferentes das suas: 45%, ante 33% da média global.
Só há dois temas em relação aos quais o brasileiro se mostra um pouco menos tolerante: 65% declaram-se contra o aborto, ante 30% de média global; e apenas 10% dos pesquisados no Brasil têm reações positivas ao saber que uma pessoa é ateia. Na Bélgica este índice sobe para 28%. O fato de alguém ter religião no Brasil - qualquer uma - é recebido de maneira entusiasmada pela oposição. A reação positiva é de 35% diante de um evangélico (a média global é 19%), 39% perante um católico (média global 24%), 13% em relação a um muçulmano, dobro do índice dos demais países; e 20% face a um judeu, ante 9% em Portugal.
Como um povo com estas características pode ter tão baixa identificação com a democracia? Uma possível explicação é a existência de um medo considerável de um contingente grande da população de ter seus valores ameaçados. A pesquisa mostra o brasileiro como um povo extremamente permeável às informações que chegam por redes sociais.
O levantamento conduzido pela ONG francesa Fondapol, com o apoio de uma parceira americana e outra brasileira, mediu o grau de confiança da população no que chega pelo meio digital. Para 82% dos brasileiros, a internet e as redes sociais são positivas, pois permitem que cada um se expresse mais livremente. O brasileiro é um dos povos que mais discordam do conceito de que as redes são negativas, pois fazem com que falemos apenas com pessoas que partilham da nossa opinião: somente 28% dos pesquisados no Brasil pensam assim, ante 34% da média global e 48% no Reino Unido.
É vasta a literatura contemporânea que faz uma correlação entre o advento das redes sociais e o estreitamento do espaço democrático, exatamente por criar bolhas na comunicação e favorecer a disseminação de informações desbalanceadas ou mesmo falsas. Por meio dessas bolhas, constrói-se a visão de que quem está do lado de fora precisa ser temido e combatido, por representar uma ameaça ao estilo de vida quem está do lado de dentro. O povo brasileiro, contudo, segundo esta pesquisa, não acha necessário ter cautela diante do fenômeno.
O coordenador da parte brasileira da pesquisa, o economista Octavio de Barros, relaciona diretamente a perda de vigor da democracia no Brasil com o processo de crise econômica desde 2015 e lembra que a pesquisa foi feita na reta final do período eleitoral, quando o prestígio do presidente Jair Bolsonaro estava em seu ponto máximo. As tendências no Brasil são uniformes e independentes de faixa etária, sexo, região de origem e categoria socioprofissional dos entrevistados.
Esquerdas
Os mais recentes levantamentos do Dieese sobre o mercado de trabalho consolidam uma das hipóteses correntes para o forte declínio da esquerda, sobretudo o PT no Brasil. É claro que o fenômeno do antipetismo, talvez o mais poderoso sentimento da opinião pública na atualidade, é multifatorial. As mudanças sociais no Brasil são apenas um dos aspectos a ser considerado.
Por muitos anos a esquerda organizou-se em um ambiente de tensão entre classes dentro do ambiente laboral, não apenas no Brasil, mas no mundo. No mundo assalariado formal, é compreensível que o patronato e o proletariado tenham opções políticas distintas. Esse universo está em um declínio acentuado nos últimos anos. Entre 2014 e 2019, na comparação de terceiros trimestres, o mundo assalariado formal caiu de 49,8% para 45% no Brasil. A queda foi mais forte em São Paulo (de 61,5% para 52,6%) e no Rio de Janeiro (de 58,1% para 50,1%). A taxa de desocupação mais desalento, em termos nacionais, cresceu de 8,1% para 15,5%, percentuais que também tiveram crescimento forte em São Paulo (de 7,7% para 13,2%) e Rio (de 6,4% para 15,7%).
No mundo novo que se abriu nos últimos anos, cresceu o peso dos trabalhadores por conta própria, do mundo informal, que muitas vezes tende a ver não o patrão, mas o governo como principal inimigo. É o governo, com a sua burocracia e a sua estrutura de impostos, seus alvarás, regulamentos e permissões, seus “rapas” e suas multas, seus radares nas rodovias federais, que se torna o grande obstáculo. É um mundo em que Bolsonaro transita bem, o que não deixa de ser um paradoxo: o saudoso do regime militar parte do princípio de que o Estado precisa sumir do mundo produtivo, seja como empresário ou regulador.
César Felício é editor de Política. Escreve às sextas-feiras



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