Uma tristeza a notícia que traz Eduardo Tessler, de Washington, na revista Época da semana passada, edição dupla de final de ano. Abaixo, a íntegra da excelente reportagem.
Durou pouco mais de 11 anos e meio a odisseia de manter aberto um museu inteiramente dedicado a notícias. O Newseum, complexo de seis andares dedicados ao jornalismo, em Washington DC, nos Estados Unidos, vai fechar. Não bastaram os 815 mil visitantes anuais do museu, que pagam até US$ 25 pelo ingresso: o modelo de negócios foi superado pela velocidade da informação. No dia 31 deste mês, o Newseum abre pela última vez. Depois, o acervo será retirado do prédio, que foi vendido à Universidade Johns Hopkins por US$ 372,5 milhões.
A cerca de dez quadras do edifício que hospeda o Newseum desde 2008 fica a redação do jornal The Washington Post. Todos os dias, o Post publica, logo abaixo de seu logotipo, a frase “A democracia morre na escuridão”. O prédio da Avenida Pennsylvania — a “rua principal dos EUA”, segundo os políticos americanos —, bem no caminho por onde passam os presidentes dos Estados Unidos na tradicional cerimônia de posse (em trajeto do Capitólio à Casa Branca), começou a ser construído em 2002. É um projeto do arquiteto James Stewart Polshek — o mesmo do hotel The Standard, de Nova York — e do designer Ralph Appelbaum. A ideia do Freedom Forum, a fundação que comanda o Newseum, era erguer um espaço para valorizar as liberdades. O gancho foi comemorar a Primeira Emenda da Constituição americana, que garante direitos individuais.
Mas é o jornalismo quem brilha no Newseum. Em que outro lugar seria possível ver mais de 100 fotos premiadas com o Pulitzer? Onde mais se encontram as principais capas dos momentos históricos do mundo, da Segunda Guerra Mundial à eleição dos papas? Lá estão armazenados desde fragmentos do Muro de Berlim à caneta Montblanc com que Mikhail Gorbachev assinou seus últimos atos — presente do então presidente da CNN, Tom Johnson, já que a caneta do líder russo estava falhando. A queda das Torres Gêmeas é um capítulo à parte. Está ali exposta a enorme antena que durante anos esteve sobre a Torre Norte e serviu de base de transmissão para todos os canais de TV de Nova York. O prédio desabou. A antena, torta, desforme, está no Newseum. Junto aos resquícios da antena do World Trade Center está a história de Bill Biggart, fotógrafo freelancer que naquela manhã de 11 de setembro saiu de casa correndo com seu equipamento quando soube do choque de um avião na primeira torre. Fotografou muito e sem medo, até que a Torre Norte desabou e ele morreu sob os escombros. Suas fotos são as imagens mais próximas da tragédia. A máquina destruída, os óculos sujos, a bolsa queimada e o que sobrou de seu crachá de fotojornalista estão bem ali, ao lado de um vídeo com depoimentos de amigos e de sua mulher, Wendy. Biggart foi o único jornalista morto na queda das Torres Gêmeas.
Os nomes de outros 2.344 jornalistas assassinados enquanto trabalhavam — inclusive alguns brasileiros — estão no Memorial dos Jornalistas. Ao lado, o mapa-múndi da liberdade de imprensa, em que o Brasil está ranqueado no 47º lugar, o que o coloca no grupo de países com “liberdade parcial de imprensa”.
Imagens de bastidores dos Kennedys, pelas lentes do fotógrafo particular da família, Jacques Lowe, e que foram restauradas pelos técnicos do Newseum. Foto: Brendan Smialowski / AFP
Imagens de bastidores dos Kennedys, pelas lentes do fotógrafo particular da família, Jacques Lowe, e que foram restauradas pelos técnicos do Newseum. Foto: Brendan Smialowski / AFP
A partir de janeiro, o acervo vai ser guardado, sem visitas liberadas, em dois espaços: em armazéns na periferia de Washington — aos cuidados do Freedom Forum, que espera algum dia construir outro Newseum — e no Clube Nacional dos Jornalistas, também na capital. Um projeto da fundação prevê exposições com partes do acervo por diversas cidades do mundo. “É difícil manter um museu pago em Washington, cidade que oferece diversos museus de primeira linha grátis”, observou o ex-editor do USA Today Ken Paulson, em artigo no jornal no início do mês. Paulson, aliás, foi por anos presidente do Newseum.
Al Neuharth, fundador do USA Today, em 1982, foi o idealizador do Newseum — seu objetivo era criar um local totalmente interativo que, ao abordar o tema da liberdade do indivíduo, levaria o visitante a ser “contaminado” pelo jornalismo. Neuharth rapidamente conseguiu apoio dos maiores grupos de comunicação dos EUA para financiar o projeto. Entre terreno, construção do prédio e manutenção, o Newseum custou mais de US$ 600 milhões. Como as empresas de comunicação perderam o interesse — e o capital disponível — em custear seu funcionamento e os ingressos não geram renda suficiente, ele fechará as portas.
A decisão sobre o fim do museu foi tomada por Jan Neuharth, que preside hoje o Freedom Forum e é filha do fundador. Durante um ano e meio, ela tentou parcerias, a venda de um pedaço apenas do prédio e até mesmo uma campanha para atrair novos investidores. Não conseguiu.
Uma das seções mais ricas do museu é aquela que exibe as histórias de vida de grandes jornalistas. Uma delas é a de Nellie Bly, a primeira repórter investigativa dos Estados Unidos. Investigação era função apenas dos homens. Em 1887, aos 23 anos, Bly fingiu ter perdido completamente a memória para ser internada no Hospital Psiquiátrico da Ilha de Blackwell, em Nova York. Depois de dez dias vivendo os horrores do local, foi resgatada pelo então diretor do The New York World, Joseph Pulitzer, e escreveu uma icônica matéria denunciando barbáries e torturas. O material publicado pressionou o governo a mudar o sistema público de tratamento psiquiátrico.
Há também críticas ao trabalho da imprensa. Algumas muito profundas, como a análise ácida à cobertura no The New York Times sobre a ascensão do nazismo, a guerra contra os judeus e as ações de Adolf Hitler. Até que o Japão bombardeasse a base de Pearl Harbour, na costa do Havaí, em dezembro de 1941, o leitor do Times quase não desconfiava de que um líder na Alemanha instaurava um modelo de campos de concentração para confinar judeus, matava alguns milhões de “inimigos” e ameaçava a paz mundial. Não era notícia, segundo seus editores. “The New York Times era um jornal de donos judeus, escrito por jornalistas católicos para um leitor protestante”, resumiu o também judeu Abe Rosenthal, editor executivo do jornal de 1977 a 1988, em um documentário exibido no Newseum. No auge do genocídio promovido por Hitler, as principais notícias do jornal eram invariavelmente sobre a sociedade americana — os campos de concentração apareciam apenas em pequenas notas na página 7. “Os Estados Unidos viviam um período de forte antissemitismo”, observa a pesquisadora Deborah Lipstad, da Universidade Emory, num estudo encontrado no museu. “Esconder as notícias do Holocausto era um reflexo daquele tempo.”
A professora da Universidade NorthWestern Laurel Leff avaliou, uma a uma, as 1.100 notícias publicadas pelo Times sobre o extermínio de judeus desde a Noite dos Cristais (novembro de 1938) até a queda do nazismo (1945). Descobriu que a esmagadora maioria se resumia a pequenas notas publicadas entre anúncios, muitas vezes tiradas de agências de notícias, sem qualquer profundidade. Apenas seis chegaram à capa em sete anos.
Outra parte do acervo é dedicada à TV, sobretudo a cobertura da Guerra do Vietnã, que representou um marco no jornalismo televisionado. As imagens gravadas em Saigon, então capital do Vietnã do Sul, e nos campos de batalha invadiam as casas dos americanos, e foi nesse período que se consolidou o modelo de telejornal com grandes âncoras. Enquanto o patriotismo se multiplicava calcado em imagens de intenso combate, a percepção dos cidadãos americanos era que os Estados Unidos estavam massacrando o Vietnã. E que a vitória seria apenas questão de dias.
O cenário mudou quando o telejornal da rede CBS adotou uma postura mais crítica, principalmente por meio da voz de seu âncora Walter Cronkite. A cobertura deu combustível aos protestos que surgiam pedindo o fim da guerra. À época, o presidente Lyndon Johnson chegou a admitir: “Se eu perder o Walter Cronkite, perco a América”.
O caráter de um museu pode parecer incompatível com o pulsar da notícia. A mesma tecnologia usada para transformar os meios de comunicação não foi empregada na atualização do espaço e do conteúdo. O enorme painel no saguão principal é velho. Hoje, seria em 3D e HD. Não há qualquer referência às redes sociais, nem mesmo ao uso que o presidente Donald Trump (e outros líderes políticos) faz desse meio — muitas vezes para atacar a própria imprensa. Ainda que necessário e único, o Newseum encerrará suas atividades como um museu datado.
Durou pouco mais de 11 anos e meio a odisseia de manter aberto um museu inteiramente dedicado a notícias. O Newseum, complexo de seis andares dedicados ao jornalismo, em Washington DC, nos Estados Unidos, vai fechar. Não bastaram os 815 mil visitantes anuais do museu, que pagam até US$ 25 pelo ingresso: o modelo de negócios foi superado pela velocidade da informação. No dia 31 deste mês, o Newseum abre pela última vez. Depois, o acervo será retirado do prédio, que foi vendido à Universidade Johns Hopkins por US$ 372,5 milhões.
A cerca de dez quadras do edifício que hospeda o Newseum desde 2008 fica a redação do jornal The Washington Post. Todos os dias, o Post publica, logo abaixo de seu logotipo, a frase “A democracia morre na escuridão”. O prédio da Avenida Pennsylvania — a “rua principal dos EUA”, segundo os políticos americanos —, bem no caminho por onde passam os presidentes dos Estados Unidos na tradicional cerimônia de posse (em trajeto do Capitólio à Casa Branca), começou a ser construído em 2002. É um projeto do arquiteto James Stewart Polshek — o mesmo do hotel The Standard, de Nova York — e do designer Ralph Appelbaum. A ideia do Freedom Forum, a fundação que comanda o Newseum, era erguer um espaço para valorizar as liberdades. O gancho foi comemorar a Primeira Emenda da Constituição americana, que garante direitos individuais.
Mas é o jornalismo quem brilha no Newseum. Em que outro lugar seria possível ver mais de 100 fotos premiadas com o Pulitzer? Onde mais se encontram as principais capas dos momentos históricos do mundo, da Segunda Guerra Mundial à eleição dos papas? Lá estão armazenados desde fragmentos do Muro de Berlim à caneta Montblanc com que Mikhail Gorbachev assinou seus últimos atos — presente do então presidente da CNN, Tom Johnson, já que a caneta do líder russo estava falhando. A queda das Torres Gêmeas é um capítulo à parte. Está ali exposta a enorme antena que durante anos esteve sobre a Torre Norte e serviu de base de transmissão para todos os canais de TV de Nova York. O prédio desabou. A antena, torta, desforme, está no Newseum. Junto aos resquícios da antena do World Trade Center está a história de Bill Biggart, fotógrafo freelancer que naquela manhã de 11 de setembro saiu de casa correndo com seu equipamento quando soube do choque de um avião na primeira torre. Fotografou muito e sem medo, até que a Torre Norte desabou e ele morreu sob os escombros. Suas fotos são as imagens mais próximas da tragédia. A máquina destruída, os óculos sujos, a bolsa queimada e o que sobrou de seu crachá de fotojornalista estão bem ali, ao lado de um vídeo com depoimentos de amigos e de sua mulher, Wendy. Biggart foi o único jornalista morto na queda das Torres Gêmeas.
Os nomes de outros 2.344 jornalistas assassinados enquanto trabalhavam — inclusive alguns brasileiros — estão no Memorial dos Jornalistas. Ao lado, o mapa-múndi da liberdade de imprensa, em que o Brasil está ranqueado no 47º lugar, o que o coloca no grupo de países com “liberdade parcial de imprensa”.
Imagens de bastidores dos Kennedys, pelas lentes do fotógrafo particular da família, Jacques Lowe, e que foram restauradas pelos técnicos do Newseum. Foto: Brendan Smialowski / AFP
Imagens de bastidores dos Kennedys, pelas lentes do fotógrafo particular da família, Jacques Lowe, e que foram restauradas pelos técnicos do Newseum. Foto: Brendan Smialowski / AFP
A partir de janeiro, o acervo vai ser guardado, sem visitas liberadas, em dois espaços: em armazéns na periferia de Washington — aos cuidados do Freedom Forum, que espera algum dia construir outro Newseum — e no Clube Nacional dos Jornalistas, também na capital. Um projeto da fundação prevê exposições com partes do acervo por diversas cidades do mundo. “É difícil manter um museu pago em Washington, cidade que oferece diversos museus de primeira linha grátis”, observou o ex-editor do USA Today Ken Paulson, em artigo no jornal no início do mês. Paulson, aliás, foi por anos presidente do Newseum.
Al Neuharth, fundador do USA Today, em 1982, foi o idealizador do Newseum — seu objetivo era criar um local totalmente interativo que, ao abordar o tema da liberdade do indivíduo, levaria o visitante a ser “contaminado” pelo jornalismo. Neuharth rapidamente conseguiu apoio dos maiores grupos de comunicação dos EUA para financiar o projeto. Entre terreno, construção do prédio e manutenção, o Newseum custou mais de US$ 600 milhões. Como as empresas de comunicação perderam o interesse — e o capital disponível — em custear seu funcionamento e os ingressos não geram renda suficiente, ele fechará as portas.
A decisão sobre o fim do museu foi tomada por Jan Neuharth, que preside hoje o Freedom Forum e é filha do fundador. Durante um ano e meio, ela tentou parcerias, a venda de um pedaço apenas do prédio e até mesmo uma campanha para atrair novos investidores. Não conseguiu.
Uma das seções mais ricas do museu é aquela que exibe as histórias de vida de grandes jornalistas. Uma delas é a de Nellie Bly, a primeira repórter investigativa dos Estados Unidos. Investigação era função apenas dos homens. Em 1887, aos 23 anos, Bly fingiu ter perdido completamente a memória para ser internada no Hospital Psiquiátrico da Ilha de Blackwell, em Nova York. Depois de dez dias vivendo os horrores do local, foi resgatada pelo então diretor do The New York World, Joseph Pulitzer, e escreveu uma icônica matéria denunciando barbáries e torturas. O material publicado pressionou o governo a mudar o sistema público de tratamento psiquiátrico.
Há também críticas ao trabalho da imprensa. Algumas muito profundas, como a análise ácida à cobertura no The New York Times sobre a ascensão do nazismo, a guerra contra os judeus e as ações de Adolf Hitler. Até que o Japão bombardeasse a base de Pearl Harbour, na costa do Havaí, em dezembro de 1941, o leitor do Times quase não desconfiava de que um líder na Alemanha instaurava um modelo de campos de concentração para confinar judeus, matava alguns milhões de “inimigos” e ameaçava a paz mundial. Não era notícia, segundo seus editores. “The New York Times era um jornal de donos judeus, escrito por jornalistas católicos para um leitor protestante”, resumiu o também judeu Abe Rosenthal, editor executivo do jornal de 1977 a 1988, em um documentário exibido no Newseum. No auge do genocídio promovido por Hitler, as principais notícias do jornal eram invariavelmente sobre a sociedade americana — os campos de concentração apareciam apenas em pequenas notas na página 7. “Os Estados Unidos viviam um período de forte antissemitismo”, observa a pesquisadora Deborah Lipstad, da Universidade Emory, num estudo encontrado no museu. “Esconder as notícias do Holocausto era um reflexo daquele tempo.”
A professora da Universidade NorthWestern Laurel Leff avaliou, uma a uma, as 1.100 notícias publicadas pelo Times sobre o extermínio de judeus desde a Noite dos Cristais (novembro de 1938) até a queda do nazismo (1945). Descobriu que a esmagadora maioria se resumia a pequenas notas publicadas entre anúncios, muitas vezes tiradas de agências de notícias, sem qualquer profundidade. Apenas seis chegaram à capa em sete anos.
Outra parte do acervo é dedicada à TV, sobretudo a cobertura da Guerra do Vietnã, que representou um marco no jornalismo televisionado. As imagens gravadas em Saigon, então capital do Vietnã do Sul, e nos campos de batalha invadiam as casas dos americanos, e foi nesse período que se consolidou o modelo de telejornal com grandes âncoras. Enquanto o patriotismo se multiplicava calcado em imagens de intenso combate, a percepção dos cidadãos americanos era que os Estados Unidos estavam massacrando o Vietnã. E que a vitória seria apenas questão de dias.
O cenário mudou quando o telejornal da rede CBS adotou uma postura mais crítica, principalmente por meio da voz de seu âncora Walter Cronkite. A cobertura deu combustível aos protestos que surgiam pedindo o fim da guerra. À época, o presidente Lyndon Johnson chegou a admitir: “Se eu perder o Walter Cronkite, perco a América”.
O caráter de um museu pode parecer incompatível com o pulsar da notícia. A mesma tecnologia usada para transformar os meios de comunicação não foi empregada na atualização do espaço e do conteúdo. O enorme painel no saguão principal é velho. Hoje, seria em 3D e HD. Não há qualquer referência às redes sociais, nem mesmo ao uso que o presidente Donald Trump (e outros líderes políticos) faz desse meio — muitas vezes para atacar a própria imprensa. Ainda que necessário e único, o Newseum encerrará suas atividades como um museu datado.
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