Excelente texto sobre o grave episódio envolvendo os humoristas, nesta semana. Publicado na quita, 26/12, no jornal O Globo.
Faz quase cinco anos que a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo sofreu um atentado terrorista que chocou o mundo. Foi um massacre. Com fuzis Kalashnikov, muçulmanos encapuzados mataram doze pessoas, a maioria jornalistas. O motivo foi a publicação de caricaturas consideradas ofensivas à religião islâmica. O cartunista e o editor estavam entre os mortos. Os terroristas saíram gritando: “Vingamos o profeta Maomé”. Era 7 de janeiro de 2015. Eu estava em Paris. Escrevi sobre “a liberdade assassinada”. Fui à manifestação pela paz e contra a intolerância, me juntando, com um lápis em punho, a cerca de um milhão e meio de pessoas.
Agora estou no Rio de Janeiro. Impossível não lembrar Charlie Hebdo ao ler sobre o suposto atentado com coquetéis molotov à sede do Porta dos Fundos. O motivo seria o especial de Natal dos humoristas, que exibe um Jesus Cristo gay. Um vídeo nas redes sociais ateia mais fogo à polêmica. Mostra o momento do ataque. Um grupo autodenominado integralista assume a autoria. A Polícia Civil descarta "terror" e chama de "explosão". A Frente Integralista Brasileira (FIB) nega relação com o grupo e desconfia que as imagens tenham sido forjadas. O integralismo é um movimento de extrema-direita criado em 1932, que voltou a ganhar força recentemente. No vídeo divulgado, um manifesto é aparentemente lido com voz distorcida por um encapuzado, ladeado por dois companheiros.
“Nós, do Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira, reivindicamos a ação direta revolucionária que buscou justiçar os anseios de todo povo brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica que o grupo de militantes marxistas culturais Porta dos Fundos tomou quando produziu seu especial de Natal a mando da megacorporação bilionária Netflix, deixando claro para todo o povo brasileiro, mais uma vez, como o grande capital anda de mãos dadas com os ditos socialistas”(...) “O Porta dos Fundos resolveu fazer um ataque direto contra a fé do povo brasileiro se escondendo atrás do véu da liberdade de expressão”.
À primeira vista, olho o vídeo torcendo para que seja um “deep, super deep fake”. Uma montagem tosca. Aos poucos, começo até a levar a sério, porque só poderia terminar assim um ano dominado pela arminha na mão, pelo recente indulto presidencial a criminosos de farda, pelas queimadas na Amazônia e assassinatos de índios, pelo lixo verborrágico de Bolsonaro e seus filhos, pela arma na cabecinha do governador Witzel e pela ausência acachapante de um prefeito no Rio de Janeiro.
Um ano depois do atentado ao Charlie Hebdo, o redator-chefe do jornal, Gérard Biard, disse ao jornal El País: “Estamos diante de novas formas de totalitarismo no século XXI, baseado em dogmas religiosos. Eu, que sou de origem italiana, rejeito a palavra ‘fascismo’ porque tem muitas conotações em um contexto histórico. ‘Totalitarismo’ me parece mais adequado e a palavra abrange muito mais do que o stalinismo e os fascismos do século XX”.
Humor tem limites? O humor satiriza tudo – do laico ao sagrado, do presidente ao operário, do rico ao pobre. Se alguém se sentir pessoalmente ofendido, que recorra à Justiça. Uma caricatura em desenho ou vídeo pode ser contestada, criticada. Mas atacada a bomba? Meses após o massacre no Charlie Hebdo, Drauzio Varella perguntou a Gregório Duvivier se para ele havia um tabu no humor. “O Islã”, respondeu. Todo mundo riu. Mas não há graça na morte.
O especial do Porta dos Fundos estreou na Netflix no início de dezembro. A sátira já traz na sinopse que é “um especial de Natal tão errado que só podia ser do Porta dos Fundos”. Achei chato. Não consegui ver até o fim. Não faz jus ao humor que consagrou o canal. Gregório Duvivier interpreta Jesus Cristo, que aparece com um namorado em sua festa de 30 anos, após 40 dias de jejum no deserto. Porchat e Duvivier dizem que o ataque à sede da produtora foi a expressão máxima da homofobia. Será? Esse episódio não se compara, em gravidade, ao atentado de Paris. Mas é um alerta contra a intolerância. Contra o fundamentalismo que está aí na nossa cara. O que aconteceu com o Porta dos Fundos foi um vandalismo barato ou um atentado ao humor e à liberdade de expressão?
Caso seja comprovada a existência de um grupo que explode casas em nome de Deus, da pátria e da família, ou em nome de qualquer outra coisa, precisamos de uma atitude rigorosa do Estado brasileiro. Quando o humor e o diálogo são substituídos pelo ódio, é nisso aí que dá.
Faz quase cinco anos que a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo sofreu um atentado terrorista que chocou o mundo. Foi um massacre. Com fuzis Kalashnikov, muçulmanos encapuzados mataram doze pessoas, a maioria jornalistas. O motivo foi a publicação de caricaturas consideradas ofensivas à religião islâmica. O cartunista e o editor estavam entre os mortos. Os terroristas saíram gritando: “Vingamos o profeta Maomé”. Era 7 de janeiro de 2015. Eu estava em Paris. Escrevi sobre “a liberdade assassinada”. Fui à manifestação pela paz e contra a intolerância, me juntando, com um lápis em punho, a cerca de um milhão e meio de pessoas.
Agora estou no Rio de Janeiro. Impossível não lembrar Charlie Hebdo ao ler sobre o suposto atentado com coquetéis molotov à sede do Porta dos Fundos. O motivo seria o especial de Natal dos humoristas, que exibe um Jesus Cristo gay. Um vídeo nas redes sociais ateia mais fogo à polêmica. Mostra o momento do ataque. Um grupo autodenominado integralista assume a autoria. A Polícia Civil descarta "terror" e chama de "explosão". A Frente Integralista Brasileira (FIB) nega relação com o grupo e desconfia que as imagens tenham sido forjadas. O integralismo é um movimento de extrema-direita criado em 1932, que voltou a ganhar força recentemente. No vídeo divulgado, um manifesto é aparentemente lido com voz distorcida por um encapuzado, ladeado por dois companheiros.
“Nós, do Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira, reivindicamos a ação direta revolucionária que buscou justiçar os anseios de todo povo brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica que o grupo de militantes marxistas culturais Porta dos Fundos tomou quando produziu seu especial de Natal a mando da megacorporação bilionária Netflix, deixando claro para todo o povo brasileiro, mais uma vez, como o grande capital anda de mãos dadas com os ditos socialistas”(...) “O Porta dos Fundos resolveu fazer um ataque direto contra a fé do povo brasileiro se escondendo atrás do véu da liberdade de expressão”.
À primeira vista, olho o vídeo torcendo para que seja um “deep, super deep fake”. Uma montagem tosca. Aos poucos, começo até a levar a sério, porque só poderia terminar assim um ano dominado pela arminha na mão, pelo recente indulto presidencial a criminosos de farda, pelas queimadas na Amazônia e assassinatos de índios, pelo lixo verborrágico de Bolsonaro e seus filhos, pela arma na cabecinha do governador Witzel e pela ausência acachapante de um prefeito no Rio de Janeiro.
Um ano depois do atentado ao Charlie Hebdo, o redator-chefe do jornal, Gérard Biard, disse ao jornal El País: “Estamos diante de novas formas de totalitarismo no século XXI, baseado em dogmas religiosos. Eu, que sou de origem italiana, rejeito a palavra ‘fascismo’ porque tem muitas conotações em um contexto histórico. ‘Totalitarismo’ me parece mais adequado e a palavra abrange muito mais do que o stalinismo e os fascismos do século XX”.
Humor tem limites? O humor satiriza tudo – do laico ao sagrado, do presidente ao operário, do rico ao pobre. Se alguém se sentir pessoalmente ofendido, que recorra à Justiça. Uma caricatura em desenho ou vídeo pode ser contestada, criticada. Mas atacada a bomba? Meses após o massacre no Charlie Hebdo, Drauzio Varella perguntou a Gregório Duvivier se para ele havia um tabu no humor. “O Islã”, respondeu. Todo mundo riu. Mas não há graça na morte.
O especial do Porta dos Fundos estreou na Netflix no início de dezembro. A sátira já traz na sinopse que é “um especial de Natal tão errado que só podia ser do Porta dos Fundos”. Achei chato. Não consegui ver até o fim. Não faz jus ao humor que consagrou o canal. Gregório Duvivier interpreta Jesus Cristo, que aparece com um namorado em sua festa de 30 anos, após 40 dias de jejum no deserto. Porchat e Duvivier dizem que o ataque à sede da produtora foi a expressão máxima da homofobia. Será? Esse episódio não se compara, em gravidade, ao atentado de Paris. Mas é um alerta contra a intolerância. Contra o fundamentalismo que está aí na nossa cara. O que aconteceu com o Porta dos Fundos foi um vandalismo barato ou um atentado ao humor e à liberdade de expressão?
Caso seja comprovada a existência de um grupo que explode casas em nome de Deus, da pátria e da família, ou em nome de qualquer outra coisa, precisamos de uma atitude rigorosa do Estado brasileiro. Quando o humor e o diálogo são substituídos pelo ódio, é nisso aí que dá.
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