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Maria Cristina Fernandes: Embraer enfrenta a turbulência da Boeing

Conheço a realidade da Embraer por ter atendido a companhia em 2018, pela TC Associados, justamente assessorando o deal que culminou na venda de 80% da aviação comercial e na criação de uma JV, com controle da empresa brasileira, para a venda do KC-390, cargueiro militar de última geração produzido pela Embraer. De forma geral e dadas as condições atuais do mercado, foi um excelente negócio para ambas as partes. Naquela época não era possível prever o desastre com o 737 Max, que agora impacta diretamente a Embraer, conforme o excelente texto e apuração da colunista do Valor revelam. Vale a pena ler a íntegra, reproduzida a seguir.

A Embraer na linha de tiro entre as gigantes

“Você terá um corte nos seus rendimentos? Você está trabalhando de graça a partir de agora até que resolva esta situação? Os parentes dessas pessoas não vão voltar. Eles se foram, mas seu salário ainda está aí”. A resposta de Dennis Muilenburg, ao deputado do Partido Democrata no Tennessee, Stephen Cohen, só veio ao final da audiência de cinco horas na comissão de transportes da Câmara dos Deputados americana. Depois do bônus de US$ 13 milhões no ano anterior, o CEO da Boeing depois de dois desastres, em menos de seis meses, com o 737 Max, teria gratificação zero.
O massacre foi proporcional à percepção, naquela comissão, de que as 356 mortes dos dois acidentes poderiam ter sido evitadas se a empresa tivesse atinado a alertas sobre falhas dos sensores do avião mais vendido do mundo. “É inexplicável, indesculpável e, até onde saiba, sem precedentes na história da aviação de passageiros”, acusou o presidente da comissão, Peter De, do Partido Democrata.
Entre e um outro acidente, o primeiro com o avião da Ethiopian Airlines e o segundo com o da empresa indonésia Lion Air, a Boeing a Boeing formalizou com a Embraer a aquisição de 80% de sua aviação comercial. Às vésperas de completar um ano, o negócio está emperrado no órgão antitruste europeu. Depois de uma primeira análise, os reguladores revelaram dúvidas sobre o impacto para a competição num mercado em que a maior empresa de aviação comercial (Boeing) do mundo engolira a líder da aviação regional (Embraer).
A decisão, postergada para março de 2020, levou a associação de acionistas minoritários da empresa a pedir abertura de inquérito ao Cade, órgão regulador nacional. O pronunciamento dos reguladores europeus aconteceu duas semanas depois do aval dos congêneres chineses. O impasse vivido pela Boeing contribuiu para a compra, pela United Airlines, de 50 aviões da Airbus para substituir sua frota de 737 Max.
Depois do segundo acidente, engenheiros da Embraer chegaram a acalentar a esperança de que seus engenheiros seriam absorvidos no desenvolvimento do avião que substituirá o 737 Max, que não voa há oito meses. Na semana passada, porém, a empresa foi surpreendida por demissões - 50, segundo fontes internas, e 22, de acordo com a companhia. Apesar de a venda não ter sido concluída, a Boeing teria manifestado desagrado por não ter sido consultada. A companhia atribui as demissões a remanejamentos internos e sustenta que o saldo de contratações no ano é positivo.
A excelência do corpo técnico da Embraer é um dos poucos consensos que sobrevivem à divisão interna da empresa desde a transação. Todos os anos, a companhia faz um vestibular em cinco cidades do país e seleciona cem engenheiros para um mestrado na empresa. O curso já resistiu a várias tesouradas. Dos 18 mil funcionários da empresa, 5,2 mil são engenheiros.
Na Boeing há três décadas, o executivo alvo dos parlamentares americanos foi um dos principais responsáveis pela aproximação com a Embraer. Foi Muilenburg quem, na condição de vice-presidente para a área de defesa e espaço da companhia, encabeçou, em 2012, a negociação para a venda de caças à Força Aérea Brasileira. Todas as empresas interessadas no negócio sabiam que nada iria para frente se não tivessem o apoio da Embraer. Privatizada desde os anos 1990, a empresa ainda preserva canal direto com a FAB.
Para conseguir vender os caças ao Brasil, a Boeing ofereceu, em contrapartida, parceria num avião, o TX, que seria desenvolvido a partir do zero para os mercados americano e do Oriente Médio. Neste momento, a Boeing tornou-se a favorita. Os dois interlocutores mais difíceis de serem dobrados foram Emilio Matsuo e Dilma Rousseff. O engenheiro-chefe da Embraer só cedeu quando a parceria atingiu, finalmente, o coração do projeto do TX. A ex-presidente acabou convencida da transferência de tecnologia embutida na proposta e que levaria a Embraer a duplicar as operações em Gavião Peixoto (SP).
A compra dos jatos da Boeing seria anunciada em 23 de outubro de 2013, Dia do Aviador, durante visita da ex-presidente aos Estados Unidos. Duas semanas antes, porém, o ex-analista da agência de segurança americana (NSA), Edward Snowden, revelou que Dilma havia sido grampeada e a viagem foi cancelada. A sueca Saab, com melhor preço, acabou sendo a escolhida para o fornecimento de 36 Gripens, pondo fim a uma disputa de 12 anos.
O insucesso da Boeing, que comprovou o peso da diplomacia sobre os negócios da indústria de defesa, não impediu que Muilenburg se tornasse CEO em 2015 e presidente do conselho de administração da empresa no ano seguinte. No comando da companhia, o executivo deu início às negociações para a aquisição da Embraer. Em dezembro de 2017 o “The Wall Street Journal” noticiou a negociação que seria fechada um ano depois. “Ele nunca escondeu sua admiração sobre como a companhia era capaz de desenvolver seus projetos com prazo e custo mais baixos do que os da Boeing”, diz um ex-executivo da companhia.
O que acelerou a operação foi a quebra da Bombardier, empresa canadense que concorria diretamente com a Embraer na aviação regional. Sobretaxada pelo governo americano e endividada, a Bombardier foi entregue por U$ 1 dólar à Airbus, empresa de capital europeu com sede em Toulouse, na França. O negócio acendeu o sinal amarelo na Boeing, que viu a concorrente herdar os aviões de até 150 lugares da canadense. Na Embraer, por outro lado, cresceram os temores em relação ao poder de pressão de uma Airbus que passara a dominar toda a cadeia industrial da aviação.
Com a operação, a Boeing também evitou que os chineses viessem a fazer uma proposta atrativa para adquirir a Embraer e, assim, acelerar sua entrada no mercado global de aviação. A Embraer chegou a ter uma fábrica de jatos executivos em Harbin, no norte da China, mas nunca conseguiu autorização para desenvolver sua aviação comercial e chega ao fim de 2019 sem vender um único avião por lá.
Um exemplo do poder de pressão da Airbus para tomar o mercado da aviação regional foi a decisão da companhia americana JetBlue de substituir sua frota de aviões da Embraer por 60 jatos de corredor único da Airbus. Cinco meses depois desta transação, a venda foi formalizada. A negociação, registrada na imprensa brasileira e mundial, como aquisição, ainda é tratada como “parceria estratégica” pela Embraer, apesar da condição minoritária (20% das ações) e sem direito a voto no conselho de administração da nova empresa.
Em contrapartida, na segunda empresa resultante da negociação, destinada à comercialização do cargueiro KC-390, a Boeing terá 49% das ações. Apesar de minoritária, encabeçará o nome: Boeing Embraer - Defense. O acordo pressupõe ainda que a cada U$ 1 investido pela Embraer, a Boeing invista R$ 3, modelo proposto como contrapartida ao investimento de U$ 2,7 bilhões da FAB no KC, projeto no qual a Boeing nada desembolsou.
Como a lei americana exige um alto grau de nacionalização para os aviões militares, uma parte do cargueiro passará a ser fabricada nos EUA. A Embraer S.A., a empresa remanescente que ficará com os demais aviões militares além da aviação executiva, se tornará fornecedora do KC. Com isso, a antiga Embraer será fatiada em três pedaços - duas joint ventures, a Boeing Brasil Commercial (aviação comercial) e a Boeing Embraer - Defense (cargueiro KC-390), além da Embraer S.A (linhas de defesa e jatos executivos), sediada no Brasil.
Com o modelo tripartite, contornou-se o estatuto da Embraer, que determinava, para o caso de venda, que o preço seria estabelecido a partir de um cálculo que somasse 60% da carteira de encomendas da empresa com 50% de acréscimo de prêmio de controle. Por esta regra, o preço a ser pago pela aviação comercial alcançaria a marca de U$ 18 bilhões. A Boeing pagou U$ 4,7 bilhões por 80% dela.
Num país que nunca teve um carro de padrão internacional para chamar de seu, mas foi capaz de fazer um avião, a Embraer é considerada a fronteira mais avançada da tecnologia tupiniquim. O time de engenheiros que a lidera será dividido entre a Boeing Brasil e a Embraer S.A, mas a alienação do controle tirou da empresa nacional decisões estratégicas sobre os projetos a serem desenvolvidos.
Em fevereiro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acusou a direção da empresa de ter omitido informações, em comunicados ao mercado, sobre a influência limitada que a Embraer passaria a ter na nova empresa. A acusação da CVM, provocada por uma ação civil pública movida pela associação dos acionistas minoritários, resultou numa multa de R$ 400 mil.
Na tentativa de apaziguar as correntes internas, a Embraer trouxe um CEO de fora dos quadros da empresa, Francisco Gomes, cuja gestão na Marcopolo foi marcada pelo primazia do acionista. O céu que se descortina não é de brigadeiro. Depois dos acidentes da Boeing, até o órgão de regulação da aviação americana (FAA) está na berlinda. Uma aprovação nesta instância garantia uma chancela quase automática pelos reguladores de todo o mundo. Na semana passada, porém, o “WSJ” informou que a Europa passará a fazer uma certificação independente nos aviões da Boeing, entre os quais todos os modelos oriundos da aviação comercial da Embraer.
Executivos da companhia no Brasil apostam que os embates da Boeing na Europa só serão superados por um acordo na Organização Mundial do Comércio que rejeite a sobretaxa imposta à Airbus pelo governo americano. Ao fazê-lo, órgão antitruste europeu empataria o jogo. A OMC, porém, resiste a esta decisão, o que pode deixar nas mãos dos reguladores, o único instrumento para conter a Boeing, a proibição da venda. Este desfecho, possibilidade ainda remota, imporia à empresa americana multa de U$ 100 milhões além de comprometer o grau de investimento da Embraer. Ao invés de contornar a guerra com as gigantes, o negócio com a Boeing acabou por colocá-la ao lado dos turbulentos interesses de um país em guerra comercial com o planeta.


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