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Dica de leitura do Estadão de hoje

Vale a pena ler a entrevista abaixo, do historiador Carlos Guilherme Mota, publicada neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo. É uma análise vigorosa.

Você também está atrás das grades

Fred Melo Paiva

No final dos anos 70, Carlos Guilherme Mota costumava receber em sua casa a visita do também historiador Caio Prado Júnior. Tomavam vinho juntos. Caio Prado gostava dos chilenos da marca Concha y Toro. Carlos Guilherme gostava de Caio Prado - sentia-se visitado pela versão brasileira de um Eric Hobsbawm. Diante do grande mestre, tentava extrair dele “umas cinco frases para repassar aos seus filhos e alunos”. Certa vez, foi direto ao ponto: “Professor, qual é a sua mensagem? O que o senhor me diz sobre a história do Brasil?”. Caio Prado Júnior respondeu: “O Brasil é muito atrasado”. Carlos Guilherme Mota achou a frase “um pouco pobre”. Insistiu: “Mas como assim?”. O Caio: “Muito atrasado. Muito”. Carlos Guilherme deixou pra lá.

“Historiador das idéias”, Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é professor titular de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo (FFLCH-USP) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi diretor-fundador do Instituto de Estudos Avançados da USP. É pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Autor, entre outros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34), prepara-se para o lançamento de História do Brasil - Uma Interpretação (Senac), escrito em parceria com sua mulher, a historiadora Adriana Lopez.

Na semana que passou, Carlos Guilherme Mota lembrou-se muito da frase de Caio Prado Júnior. E à luz dessa lembrança, ele concedeu ao Aliás a entrevista que segue:

A história do sistema prisional no Brasil é uma seqüência de atos de barbárie?

Quando houve a Inconfidência Mineira, ou mesmo a Revolta dos Alfaiates, as condições carcerárias eram miseráveis. Há descrições disso. E olha que foram presos ouvidor, desembargador, advogado. Tem-se a idéia de que (o jurista e poeta luso-brasileiro) Cláudio Manuel da Costa não teria suportado a situação e cometido suicídio. Mais adiante, em 1817, revolucionários do Nordeste foram presos na Bahia, entre eles Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, e o clérigo Francisco Muniz Tavares. Eram pessoas, digamos, de alto coturno, tiveram alguns privilégios. Ainda assim seus testemunhos do cárcere são um horror. Durante todo o século 19 as condições são, sim, de barbárie. Não há a idéia de cidadania como a temos hoje, nem minimamente. Nos anos 1920 e 1930, comunistas e anarquistas eram recolhidos em presídios como o famoso Maria Zélia, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ficavam confinados em solitárias com água pingando na cabeça. Imperava por aqui - e de alguma forma ainda impera - a lei da fazenda: se você fez alguma coisa errada, mando um capanga te pegar. Se você é um criminoso, significa que pode ser morto. É por isso que, risonhamente, diz-se que a única contribuição que o Brasil deu para a república no mundo foi a tocaia. Aqui sempre houve exímios matadores.

Por que a maneira cruel de lidar com a pessoa presa se perpetua na história do Brasil?

O ex-presidente Fernando Henrique disse o seguinte à revista Piauí: “Falta ao Brasil a convicção profunda de que a lei conta”. É uma boa frase. Mas por que falta essa convicção? Porque a maneira como se pensa o direito no País permanece dentro de uma tradição estamental, do senhoriato, escravagista. Desde o Império, nossa elite nunca deixou de ser colonial e senzaleira, ainda que tenhamos transitado da economia dos escravos para a economia assalariada. Ela é aquilo que o ex-governador Cláudio Lembo denominou muito bem, num desabafo: a elite branca e má. Hoje é sabido que, no episódio dos ataques do PCC, Lembo foi acossado para mandar matar todo o mundo.

A elite brasileira é atrasada a esse ponto?

O Brasil nunca foi dado a revoluções, como as que aconteceram em outros países. O resultado é que o senhoriato gerado pelo período colonial se metamorfoseia e não há uma ruptura. Essa camada dirigente se reformula cada vez que há um movimento social mais vigoroso. A ele se opõe uma contra-revolução preventiva. Isso é o que explica a paz no Segundo Reinado, de 1840 a 1889. E ainda há muitos historiadores ingênuos que vêem dom Pedro II como grande imperador, transformado-o até em capa de Veja como “o imperador-presidente”. Este foi um período em que não se construíram universidades no ritmo que se fez em outros lugares, não se aboliu a escravidão - somente ao final e mesmo assim por pressões externas. A tal “paz imperial” se deveu a uma máquina de opressão plena. O senhoriato de então vem até os dias de hoje. O Sarney não pode vir a ser presidente do Senado? Veja Sarney e Roseana, ACM e ACM Neto. O que existe no Brasil são capitanias hereditárias.

E o que isso tem a ver com a situação das cadeias?

O problema não é apenas daqueles que estão atrás das grades. Não adianta ficarmos daqui como biólogos de laboratório olhando as formigas. Nós todos somos as formigas, aprisionadas por um modelo ancestral. A sociedade civil, se é que ela existe, só faz grandes movimentos quando há carestia. Projetos sociais e políticos mais vigorosos nem entram na pauta dos partidos. Veja a inconsistência ideológica atual do PSDB, por exemplo. É um partido que se pretende socialista. O próprio petismo está dividido. Em quantas facções? Essa semana, uma matéria do Estadão disse que as cadeias de São Paulo têm 231 adolescentes. O ponto mais grave disso é que há uma indiscriminação entre adultos e menores, homens e mulheres. Estamos caminhando de marcha à ré e em alta velocidade. Tudo isso faz parte da situação em que nos metemos: há bolsões socioeconômicos de riqueza e ilhas da fantasia socioculturais. O que se vê é a vitória da cultura do marketing e da sociedade do espetáculo. E com isso se enterra a memória de qualquer pretensão à sociedade civil moderna.

Qual é seu conceito de sociedade civil moderna?

Uma sociedade em que o contrato social é nítido e respeitado. Em que são observados os deveres e as obrigações dos cidadãos. Nós somos todos prisioneiros. Chegamos a um momento-limite da história. Não é que “daqui para a frente é a barbárie”. Já é a barbárie. O sistema carcerário é apenas o intestino de todo um organismo doente.

Essa imagem remete a uma parcela, digamos, descartável da população. É isso mesmo?

É uma imagem forte. Mas pense em Tropa de Elite, o filme. Há boas cabeças dizendo que é daquela forma mesmo que o sistema vai se depurar. Eu acho que falta a essas pessoas consultar os grandes historiadores. Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior faz um corte no ano de 1808. Ali se vê algo que é importante para entendermos a sociedade brasileira de hoje: há uma imensa massa de população que, não sendo de escravos, não podia ser de elite. São aqueles que (a historiadora) Laura de Mello e Souza chama de “os desqualificados” - a massa. Se você quiser reencontrar esses personagens pode ir, por exemplo, à fila de uma lotérica. São pessoas que estão ali para fazer uma aposta: não sendo escravos, gostariam de ser ricos. É uma massa que mal sabe fazer fila. Não quero propor disciplina militar, mas isso denota alguma coisa sobre a posição de cada um numa sociedade minimamente organizada. Aqui na Oscar Freire (nos Jardins, onde mora), catadores de papel andam com seus carrinhos na contramão às 6 horas da tarde. Por outro lado, há executivos de Harley Davidson que trafegam pela calçada. Chegamos a um ponto em que o cárcere não é a grande questão.

O senhor parece discordar da visão de um Brasil que, embora desigual, mantém uma certa harmonia.

Um país com 400 anos de escravidão não pode ser harmonioso. No Brasil, a ideologia exerce seu papel, que é o de arredondar as diferenças e ocultar o real. Mas o real está posto, nas lutas de classes entre os estamentos senhoriais e as castas lá embaixo. Somos uma sociedade muito conflituada, e por aí podemos entender melhor os fatos que sempre ocorreram nos cárceres brasileiros.

A Justiça não deveria dar conta dos excessos ocorridos nas prisões?

A legislação brasileira sempre funcionou para proteger a propriedade. Em outros tempos, se houve uma preocupação com o escravo, era de que não fosse “danificado” enquanto mercadoria. Com a imigração acontecida em princípios do século 20, muitas idéias de caráter socialista, sindicalista e anarquista acabavam em ações de deportação ou desterro - “Desterro”, aliás, batiza muitas cidades brasileiras. No Estado Novo, por volta de 1937, o então ministro da Justiça Francisco Campos criou uma frase emblemática: “Governar é prender”. Como falar de uma nova sociedade civil a partir de uma idéia como essa? Como pensar nisso se sempre tomamos o criminoso por um ser execrável - e, pior, uma pessoa matável?

Como funcionavam as masmorras do Estado Novo?

O militante comunista Harry Berger, figura de porte internacional, esteve preso com Luís Carlos Prestes em uma dessas masmorras. Com o passar do tempo, as unhas e os cabelos de Berger foram ficando muito compridos. Durante rompantes de loucura, ele urrava. A idéia era fazer o mesmo com Prestes - deixá-lo louco. Mas ele agüentou firme. Sobral Pinto, que era católico, foi quem conseguiu a soltura de Harry Berger. Diante de Getúlio, o que o grande jurista fez foi citar as normas da Sociedade Protetora dos Animais.

Como o golpe de 64 contribuiu para a escalada desse tipo de violência?

Os militares substituíram os delegadões pseudoliberais - xerifes com alguma bibliografia - que haviam surgido no final dos anos 40. Com o Deops, introduziram-se os métodos sistemáticos de mapeamento e extração de informação. Até 1976, pelo menos, muita gente foi morta sob tortura nos porões da ditadura, como se sabe. É dessa época também o nosso baby boom. Explico: Marcola não tem por volta de 40 anos? Ele não é filho de Kennedy, como se diz nos Estados Unidos a respeito dos baby boomers. Marcola, podemos dizer, é um sobrinho do Delfim.

Por que a abertura política não conseguiu mudar a situação nas cadeias no Brasil?

O deputado José Genoino já disse que, por terem sido policiados, muitos dos políticos eleitos depois da ditadura não sabem organizar a força policial. Todos os ministros da Justiça desse período - quase todos meus amigos - foram razoavelmente condescendentes com este quadro mental. Para além dos direitos humanos, há uma coisa que são os direitos da cidadania, que por aqui nunca foram observados. No Brasil, as fronteiras da cidadania e da não-cidadania se confundem. Na Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, isso é diferente porque há uma sociedade de contratos, a começar pelos de trabalho. Se a loja fecha às 18 horas, ninguém será atendido em Paris às 18h10. Nós ainda vivemos numa sociedade de status - dependendo do seu, você pode ser recebido em qualquer lugar, ainda que esteja complemente fora do horário. Há uma segunda questão: em 1970, éramos 90 milhões de habitantes no Brasil. Esse número dobrou. Como este Estado patrimonialista, afeito ao neocoronelismo político e ao populismo vai providenciar educação para a cidadania dessa gente? Aliás, aí estão eles, os tais desqualificados do período colonial...

Como promover a inclusão dessas pessoas?

Inclusão onde? Num sistema que tinha como chefe de um dos poderes o Renan Calheiros? Que pode agora ser substituído por José Sarney? Num sistema que tem o pântano do PMDB, em que todas as boas idéias chafurdam? A cada vez que a sociedade civil avança, é preciso que se construam mecanismos para que não haja retrocessos. Mas, infelizmente, a história do Brasil mostra que fazemos o contrário e andamos para trás.

O senhor vê alguma chance de um presidiário sair da cadeia melhor do que entrou?

Os presídios, hoje, comportam pelo menos o dobro de gente do que deveriam. Não há nenhum projeto consistente de reeducação. Dizer que não há verbas para tal é besteira. Para a sociedade civil burguesa, seria muito mais barato bancar isso do que ficar pagando automóveis blindados e seguranças. Mas não: esses figuras fora da lei são colocadas também para fora do direito, e assim podem ser mortas. É desse jeito desde a época da Colônia - uma jurisprudência rústica do mundo real. Daí que, em certos bairros das periferias brasileiras, é quase normal a presença dos justiceiros. De dia eles estão de farda, de noite fazem o serviço extra.

Se é mais barato recuperar o preso, por que isso não acontece?

Justamente porque vivemos o capitalismo senzaleiro. Nosso empresariado ainda é colonial. O supermercado ao lado da minha casa funciona como um porto: caminhões-contêiners chegam a qualquer hora da noite para descarregar mercadoria, em total desacordo com a lei. Na outra ponta, senhoras que lá fazem compras deixam seus motoristas estacionados onde não pode. E o menino do caixa, coitado, tem 15 minutos para almoçar. Se o sistema carcerário é o intestino, a cabeça do organismo é essa elite com mentalidade imperial. Aquilo que Cláudio Lembro chamou de a elite branca e má, está bem descrito sociológica e juridicamente por Raymundo Faoro. O modelo que estamos vivendo hoje, que nem Lula nem FHC desmontaram, é o modelo autocrático burguês. Podia ser democrático burguês, mas não é. Mário Covas dizia: “Precisamos de um choque de capitalismo”. Capitalismo vem junto com projeto nacional. Mas não é isso o que temos. Ao contrário, são medidas provisórias, essa negociação indecente com a Câmara e o Senado, as concessões insuportáveis para que se aprove a CPMF. Uma vez, Caio Prado Júnior me disse a seguinte frase: “Toda a história do Brasil sempre foi um negócio. Só um negócio”. É isso.

O que fazer diante do quadro crítico que estamos vivendo com relação à questão carcerária?

Com a ausência de políticas públicas que coloquem nos eixos a antiga questão nacional, não chegaremos a lugar nenhum. Conselhinhos ou conselhões, quase figurativos, com figurinhas marcadas, vão fazer com que continuemos em marcha à ré. A propósito, se é para andar para trás, que os juízes pelo menos saiam de vez em quando dos tribunais para inspecionar as cadeias, inclusive na calada da noite. Assim prescreviam as Ordenações Filipinas. Além disso, que se sonegue menos, que a máquina do Estado seja desinchada de aspones e parentelas, que o rigor com a coisa pública seja observada. Não se trata, em casos de desvios vultosos de verbas, de perda do cargo - mas de prisão rigorosa, de ministros a servidores subalternos, como acontece na França, nos Estados Unidos, na Alemanha. Que os aparelhos de Estado se reaparelhem, a partir de novas concepções de educação, com pedagogos universitários especializados em educação prisional. Que requalifiquem carcereiros e funcionários de presídios com professores nos locais, assim como médicos, dentistas, profissionais da computação e bons psicólogos. Um serviço social genérico consola, mas não adianta. Em suma, profissionais que forneçam elementos para uma requalificação social dos marginalizados nos vários ramos, de hotelaria e marcenaria ao torno mecânico. Caso contrário, os presídios continuarão sendo escolas do crime.

Para fechar: qual foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça quando viu as fotos de presos acorrentados a pilastras numa delegacia de Santa Catarina?

O Brasil é muito atrasado. Muito atrasado. Muito...

Comentários

  1. Palmas para Carlos Guilherme Mota e sua pequena grande aula de Brasil!!!

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