Pular para o conteúdo principal

Dois textos sobre o golpe na Bolívia

O leitor pode tirar suas próprias conclusões: o primeiro texto é de Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo, que não é propriamente um diário esquerdista. O segundo, de Reinaldo Azevedo, da ultra-direitista Veja. Reinaldo tenta botar culpar Evo Morales pela truculência da direita boliviana, repetindo um velho expediente de tentar culpar a vítima. E Rossi coloca os pingos nos is, ressaltando a hedionda frase do líder oposicionista, ressaltada em negrito. Vale a pena ler até o fim...


É GOLPE, POR CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO - O que está em andamento na Bolívia é uma tentativa de golpe contra o presidente Evo Morales. Segue uma linha ideológica e táticas parecidas às que levaram ao golpe no Chile, em 1973, contra o governo de Salvador Allende, tão constitucional e legítimo quanto o de Evo Morales.
Os bloqueios agora adotados nos Departamentos são a cópia de locautes de caminhoneiros que ajudaram a sitiar o governo Allende.
Outra semelhança: Allende elegeu-se presidente, em 1970, com pouco mais de um terço dos votos (36%). Mas, três anos depois, sua Unidade Popular saltou para 44%, em pleito legislativo, o que destruiu qualquer expectativa da direita de vencê-lo política ou eleitoralmente.
Foi na marra mesmo, o que deu origem a um dos mais brutais regimes políticos de uma América Latina habituada à brutalidade.
Evo Morales também se elegeu com menos votos do que obteve agora no chamado referendo revogatório, o que demonstra um grau de aprovação popular até surpreendente para as dificuldades que o governo enfrentou desde o primeiro dia, em parte por seus erros e em parte pelo cerco dos adversários.
A luta dos Departamentos pela autonomia, eixo da crise, é também legítima e precede Evo Morales.
Mas passou a ser apenas um biombo para encobrir as verdadeiras intenções, cristalinamente reveladas a Flávia Marreiro, desta Folha, por Jorge Chávez, líder "cívico" de Tarija, um dos Departamentos rebelados contra o governo central: "Se precisar, vai ter sangue. É preciso conter o comunismo e derrubar o governo deste índio infeliz".
Cena mais explícita de hidrofobia e racismo, impossível. Nem o governo nem a oposição no Brasil têm direito ao silêncio, escondendo-se um na não-ingerência em assuntos internos e outra em preconceitos similares.


EVO, O GOLPISTA,
POR REINALDO AZEVEDO

A situação da Bolívia (ver posts abaixo) pode degenerar em guerra civil. É fácil, convencional e estúpido olhar para o país e acusar a, como é mesmo?, direita golpista. Coisa de energúmenos — que não leram os livros de referência sobre o assunto — ou de quem tem mesmo má-fé ideológica, pura e simplesmente: na dúvida, acuse a direita. A oposição boliviana age da melhor maneira? Acho que não. Mas ela criou a crise sozinha? Ora, tenham paciência!


Desde o primeiro no dia no poder, Evo Morales não tem feito outra coisa que não assaltar a institucionalidade que o elegeu. Governos que desrespeitam as regras do jogo democrático ou degeneram em ditaduras ou acabam depostos — e, às vezes, por outras ditaduras. Um maluco como Hugo Chávez pode até ter uma longa permanência no poder. Mas, acreditem, aquilo não dará em boa coisa. Quantos foram os nossos analistas, com as respectivas cabeças ornadas por um belíssimo par de orelhas, que não viviam a indagar: “Oh, o que Chávez fez de antidemocrático? Ele sempre faz referendos e consultas populares”. Como se isso fosse garantia de democracia.

Não creio que alguém ignore que se pode recorrer a instrumentos da democracia para solapar a própria democracia. Isso é tão corriqueiro no continente, hoje ou antes. Vejam o Brasil de 1964 se querem um exemplo da casa. A democracia foi para o brejo só porque havia uma elite golpista? Essa é a versão dos que imaginavam outros golpes: o populista — do próprio Jango — e o comunista, das esquerdas. Aquele governo foi deposto porque a desordem foi levada para dentro do poder pelo próprio presidente — e, claro, porque havia golpistas em excesso no Brasil: na direita, na esquerda e na Presidência da República. A democracia morreu por falta de quem a defendesse.

Volto à Bolívia. Morales, que costumo chamar aqui de “índio de araque”, tentou mimetizar os métodos Chávez na Bolívia. Só que não com o mesmo sucesso — até porque os bolivianos viram o que aconteceu na Venezuela. Essa história de fazer referendo revogatório de mandato para reivindicar mais poder é também golpe, só que dado por intermédio de um arremedo legal. Um dos caminhos para a degeneração da institucionalidade é justamente essa “plebiscitização” da política. No Brasil, sabemos, há quem sonhe com isso.

Desde o primeiro minuto de seu mandato — e, antes, já na campanha —, Evo Morales decidiu ser o presidente da Bolívia Ocidental, justamente onde se concentra a massa de miseráveis que ele pode manipular com seu discurso beligerante contra “os brancos” e contra “os ricos”. Mas a Bolívia Oriental, onde estão "os brancos e ricos", responde por boa parte da riqueza do país e rejeita os métodos escolhidos pelo presidente.

A idéia de que a democracia é apenas o regime da maioria é estúpida — o fascismo, por exemplo, era um regime de maioria. A democracia compreende também o respeito à minoria. E isso nada tem a ver com “privilégios”. Gente como Evo Morales, Rafael Correa (Equador) e Chávez não entende o princípio. No Brasil, é bom que se diga, há facções do petismo que ainda não se conformaram com o fato de Lula, popular como é, estar limitado por uma Constituição e por leis.

Eis aí. Tentativa de golpe da direita? E por que não se falar, então, em contragolpe? Espero que os opositores de Evo Morales renunciem à violência sem mudar o propósito de conter o aprendiz de ditador. Ele vai ter de negociar. Ou vem por aí um banho de sangue.

Comentários

  1. Bom dia Magalhães,

    Hoje fiz uma coisa que não sou muito habituado á fazer, entrei no blog do Reinaldo Azevedo. e li esse texto sobre o Evo. É lamentável o que esse senhor diz. Ele e sua revista não merece nada à não ser a lata do lixo.

    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Dear Luiz,
    in my opinion Azevedo doesn't need any more space of what already Veja gives to him. He is not a reference at all in the serious international mass-media just as the great majority of the Brazilian "journalists", much more interested in their private "affairs" than in a logical analysis.

    Villa Lucchese

    ResponderExcluir
  3. Preto é branco. Verdade é mentira. Guerra é paz. Eleições legítimas são golpes. Veja faz bom jornalismo e tem compromisso com a democracia.

    Foi interessante mesmo, aquilo do Clovis Rossi, de quem eu sempre ouço falar, "Era realmente bom, faz tempo; que aconteceu com esse cara?" Bom saber que existe um pensamento conservador no Brasil que não é antidemocratica. É o que falta por aí.

    ResponderExcluir
  4. Azevedo apóia indiscriminadamente a violência usada pelos opositores de Evo. Ele diz q é contragolpe, então ele legitima a violência deles. Ainda mais q Azevedo é tão racista qto eles, pois não faz muito tempo ficou desdenhando e tirando sarro de índios e quilombolas q lutam por direito á terra. Azevedo é leitura obrigatória da nossa extrema-direita integralista e racista.

    ResponderExcluir
  5. Só mesmo uma pessoa que não tem nada para fazer ou que goste de piadas de mau gosto para ler esse tal de Reinaldo Azevedo. O imbecil só escreve bobagens.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...