Após mais de um ano de medo, crise econômica e luto, abrir o jornal é um ato de autoflagelação. Pessoas enlouquecendo na quarentena e perdendo emprego, negócios falindo, gente passando fome, maridos matando esposas, pais e mães matando os filhos. Frequentemente me sinto como uma formiga num tsunami e acho que nada pode ser feito. No último "Roda Viva", contudo, a diplomata norte-americana Samantha Power disse algo que cutucou minha desesperança. Joe Biden só conseguiu a maioria no Senado —e, portanto, a capacidade de governar— por conta de jovens negros da Geórgia que saíram de casa em casa tocando campainhas e convencendo outros jovens negros a votar. Parei um pouco pra pensar e me lembrei de pessoas que estão na rua agora mesmo, no Brasil, tocando as campainhas, escreve Antonio Prata na Folha de São Paulo, em artigo publicado domingo, 2/3. Continua a seguir.
Por exemplo: o pessoal da campanha “Tem gente com fome, dá de comer”. São mais de 200 organizações, unidas na “Coalizão Negra por Direitos”. Tem religiosos, quilombolas, LGBTQ+, organizações de favelas e periferias de norte ao sul do país. Movimento Negro Unificado, Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas, Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará...
Diante do apagão de dados, num governo que rejeita o Censo, as vacinas e o pensamento lógico, os movimentos criaram um mapa da fome juntando informações de suas próprias redes. Com o apoio de entidades, como Anistia Internacional, Instituto Ethos e Oxfam Brasil, e doações de empresas e pessoas físicas, a campanha já começou a alimentar parte das 222.895 famílias da lista elaborada. Por causa desse pessoal, dessas instituições e doadores, muitos brasileiros largados ao Deus dará pelo governo não morrerão de fome.
Há quem ajude doando, há quem ajude recebendo: um dos poucos momentos de otimismo que tive desde 2013 foi no ano passado, participando de uma live com três refugiados. Leonardo Matumona, músico congolês, Eliezka García, jornalista venezuelana, e Anas Obbaid, jornalista, ator e cineasta sírio. Eles falaram das dificuldades de adaptação, mas sobretudo de como foram bem recebidos, sentiram-se fortalecidos por nossa cultura e conseguiram recomeçar suas vidas.
Foi um choque: eu já havia esquecido que o Brasil tinha qualidades. Os três e mais dezenas de milhares de refugiados dos quatro cantos do mundo foram e são acolhidos pelo Instituto Adus, ONG que auxilia esses imigrantes forçados ensinando português, qualificando-os profissionalmente e arrumando emprego, contatos e outros apoios.
Uma milícia como a que nos governa precisa de todo mundo com medo, acreditando que nenhum dissenso é possível. Ações como “Tem gente com fome, dá de comer” e o Instituto Adus nos trazem coragem e fé no futuro. Ajudá-los com doações salva não só quem precisa de um prato ou de guarida mas também nos fortalece para enfrentar os efeitos deletérios da irrealidade cotidiana.
Não seremos capim pros orangotangos. Estamos na rua, tocando campainhas (de máscara, mesmo na metáfora) e ouvindo uma música vinda lá de 2022: não sei se é “Está chegando a hora” na voz de um bloco de Carnaval, com os tambores do Ilú Obá de Min ou Billie Holiday cantando “Georgia on My Mind”.
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