Quanta ruína comporta uma nação? O século XX foi pródigo em experimentos atrozes: a Alemanha se autodestruiu duas vezes; o Japão amargou duas bombas atômicas; a Revolução Cultural chinesa deixou um rastro de 2 milhões de mortos. Mas não menos espantosa que a ruína foi a capacidade de recuperação. Das cinzas e dos escombros desses infortúnios renasceram a força, a esperança e a conquista de dias melhores. Assim como a natureza aviltada, as sociedades humanas são portadoras de energias regenerativas das quais mal desconfiamos. O Brasil desceu aos infernos. Nada que se compare, é certo, aos piores desastres do século passado, mas o suficiente para ensombrecer os horizontes e abalar a confiança em nosso futuro comum. O rol de reveses e frustrações vai longe: a tragédia da Covid-19 agravada pelo negacionismo ignorante e cruel do governo federal; o desemprego e a fome arruinando a vida de milhões de famílias; a democracia fustigada e fragilizada pela ameaça de confronto entre os Poderes; os recordes sucessivos do desmatamento no bioma amazônico. Diante disso, como não restar soturno, apreensivo e revoltado com o rumo que as coisas tomaram no país?, questiona Eduardo Giannetti em artigo publicado na revista Época desta semana. Continua a seguir.
“Abandonai toda a esperança vós que entrais”, inscreveu Dante na porta do Inferno. Motivos para a consternação não faltam. O risco, porém, é permitir que as angústias do momento e suas ferozes ameaças se traduzam em desistência e dispersão. Pois ceder agora ao desânimo e abraçar a crença de que somos um fracasso total — uma desgraça a perder de vista — produziria um só resultado: piorar as coisas. Não é difícil imaginar a que ruinosa incapacidade de reação nos conduziria tal estado de ânimo. Adversidades fazem parte da vida das nações — a diferença está na resposta que elas suscitam. Perder a esperança é condenar-se ao Inferno.
O que fazer? Como recuperar a fé em nosso futuro e enfrentar as ameaças e os desafios do presente? A resposta depende do horizonte de tempo contemplado. Para além das premências imediatas — o combate à pandemia, à fome e ao desemprego — e para aquém dos projetos de mais amplo alcance e longo prazo — a construção simbólica e prática de um ideal compartilhado de nação ou sonho brasileiro —, acredito que a principal tarefa política da atualidade reside na reconstrução, em novas bases, da ampla e robusta união de forças oposicionistas forjada no combate ao regime militar de 1964 e que teve como desfecho a vitoriosa redemocratização do Brasil.
Três grandes forças de oposição foram gestadas durante a vigência da ditadura. O surpreendente é constatar que, em três décadas de exercício democrático, cada uma recebeu do eleitor a oportunidade de governar o país e mostrar a que veio. A sequência poderia ter saído da prancheta de um cientista político: primeiro o MDB de Sarney e Ulysses; depois o PSDB de Fernando Henrique; e, por fim, o PT de Lula e Dilma (a única peça estranha ao enredo — Collor — foi rapidamente expelida da cena). O impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro, frutos do descrédito do establishment político, da corrupção revelada pela Lava Jato e do sentimento antipetista, selam o fim de um longo ciclo na jovem democracia brasileira.
O passado pode ser conhecido mas não alterado; o futuro é ignorado, porém aberto. A vitória da extrema-direita bolsonarista em 2018 — a parte que nos toca na ascensão do populismo no mundo — é um alerta e algo mais: uma fratura. Como na ditadura, ela racha o Brasil ao meio. Ela nos impõe a todos uma disjuntiva inescapável e sem meio-termo: a favor ou contra. Se alguma dúvida ou ilusão restava quanto à gravidade da ameaça que o governo Bolsonaro representa a nosso futuro, o que nunca tive, o trágico desastre de sua inépcia, mendacidade e obscurantismo ante a pandemia, responsável direto por um sem-número de mortos, não deixa margem a dúvida.
O veredicto das urnas na encruzilhada do pleito de 2022 definirá nosso futuro — se não para sempre, pois nada é, por muitas gerações. O tenebroso retrocesso em que nos metemos pode — e precisa — ser revertido. E o caminho, penso eu, passa necessariamente pela ação política, ou seja: pela formação de um bloco capaz de virar o jogo. Isso exigirá, acima de tudo, uma reaglutinação das forças que combateram e derrotaram a ditadura engrossada por todos aqueles que, defensores das causas ambientais e identitárias, mas fora dos partidos existentes, se opõem à pauta autoritária e singularmente retrógrada do atual governo.
Não será fácil. O grande risco é que a fogueira das vaidades e disputas personalistas se sobreponha ao imperativo da união de forças em torno de um programa comum. A fragmentação do campo democrático e progressista terminaria abrindo o caminho e se tornando o maior aliado do bloco bolsonarista nas próximas eleições. A pergunta que devemos nos fazer é: se fomos capazes de unir forças e trabalhar conjuntamente, não obstante nossas diferenças, diante do inimigo comum da ditadura, por que haveria de ser diferente agora, na luta contra um adversário que se afigura tão nocivo e ameaçador — imagine reeleito — como foi o regime militar?
“Haverá muita coisa em jogo em 2022. A hora cobra humildade, foco e desprendimento. Não a anulação das diferenças, mas a afirmação dos valores compartilhados. O que, afinal, nos une?”
Há muita coisa em jogo. A hora cobra humildade, foco e desprendimento. Não a anulação das diferenças, mas a afirmação dos princípios e valores compartilhados. O que, afinal, nos une? E o que demarca com nitidez o antagonismo entre os campos em disputa? A resposta, creio, contempla três pontos essenciais:
1) A defesa intransigente da democracia. Em outros tempos soaria inócuo ou banal; infelizmente deixou de sê-lo. Como ficou claro desde junho de 2013, o sistema político vigente no Brasil (como em outros países) está em xeque. Há uma crise de representação: os partidos e os profissionais da política se renderam à lógica do corporativismo e não mais respondem aos anseios da sociedade. Se o bolsonarismo flerta com a excitação do caos seguida de recaída autoritária como saída, o que é inadmissível, trata-se aqui de reconhecer a realidade do problema e oferecer a defesa e o aprimoramento da ordem democrática como única solução cabível. O desafio é restaurar a confiança da cidadania nas instituições. A democracia é inegociável.
2) A redução da desigualdade por meio da formação de capacidades humanas. O Brasil padece de uma secular, obscena e cruel desigualdade. O Estado arrecada um terço da renda nacional em tributos e não atende minimamente à oferta de bens públicos em áreas críticas para nosso futuro, como ensino fundamental, saúde, segurança e moradia. Daí que passamos por períodos autoritários e democráticos, governos de direita e esquerda, mas chegamos ao século XXI com cerca de metade dos domicílios sem coleta de esgoto. Programas focados de transferência de renda são válidos e bem-vindos como política emergencial, porém estão longe de oferecer solução em caráter permanente. A formação de capacidades humanas para uma vida plena por meio da educação de excelência e do acesso à saúde é o caminho da equidade.
3) A preservação e valorização de nosso patrimônio ambiental e cultural. Temos uma responsabilidade planetária. O mundo precisa do Brasil, assim como nós precisamos do mundo. A biodiversidade de nossa geografia e a sociodiversidade de nossa história são os principais trunfos brasileiros diante de uma civilização em crise. O criminoso descaso de BolsoNero pelas culturas afro-indígenas e pelo nosso patrimônio ambiental promove a destruição do que temos de mais original e valioso: reduz o Brasil à condição de pária mundial. A devastação da Amazônia, em especial, não só põe em risco o acesso do agronegócio aos mercados externos, como ameaça inviabilizar a fertilidade do Cerrado na medida em que solapa o regime pluviométrico — “os rios voadores” — do qual depende a agricultura no Centro-Oeste. Os serviços ambientais precisam entrar na conta. Mais que ao mundo, o Brasil deve a si mesmo uma política ambiental à altura de sua fabulosa dotação de recursos naturais, biodiversidade e beleza.
Democracia, equidade e valorização do patrimônio ambiental e cultural: as coisas brilham com mais intensidade quando estamos na escuridão. Até aqui, suponho, tudo azul; nossas diferenças, embora legítimas, tornam-se absolutamente secundárias diante do mal maior que nos depara.
O problema, é claro, mora mais em baixo. Mora na imensa dificuldade de traduzir o simples enunciado dos princípios e valores que nos unem em ação política consequente e lideranças dispostas a sublimar suas vaidades, sectarismos e ressentimentos tendo em vista o bem comum. É banal, mas verdadeiro: tudo esbarra em nomes. Quem abre mão do quê? Quem cede os holofotes para quem? Quem decide o quê? Sem esquecer, claro, das goelas partidárias ávidas de cargos e orçamentos. O espírito público e a vocação de estadista andam em falta no Brasil.
Mas se o acordo acerca do essencial, de um lado, e o pesadelo de um bolsonarismo revigorado nas urnas, de outro, não forem capazes de nos unir na construção de uma real e competitiva alternativa de poder, o que poderia fazê-lo? É difícil imaginar. De uma coisa, porém, estou certo: divididos, naufragamos.
Eduardo Giannetti é economista e cientista social formado pela Universidade de São Paulo com doutorado em economia pela Universidade de Cambridge. Autor de diversos livros, entre os quais “Trópicos utópicos” (2016) e “O anel de Giges” (2020)
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