As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais. Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir, escreve Fernando Abrucio no Valor, em texto publicado dia 30/4.
Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado
para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas
ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais
próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral
do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também
em seu comportamento político.
Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito
por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e
com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo
bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros
básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade
cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as
principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde
foram completamente ignoradas.
Uma lição ficou dessa história: os programas de governo
precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa
de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as
propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num
primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num
segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas
várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de
cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de
governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à
Presidência da República.
O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está
na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já
disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos
da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do
ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos
países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um
ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam
completamente o setor - o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem
sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se
pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser
habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.
O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos,
especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma
procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados.
Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro
prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo.
Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo
acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na
respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o
governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções,
que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.
Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes
que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade
do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário
também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis.
Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com
a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional,
como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante
despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia
ter sido mais colocado em questão durante a campanha.
Há um terceiro e último elemento que já antecipava o
despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu
grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado
para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e
aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha
um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e
políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o
ódio aos adversários.
O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de
“Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não
são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas
políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos
cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A
visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se
firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a
desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da
diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo
brasileiro vão no sentido contrário.
A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que
organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram
enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com
as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão
inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma
parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos
eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo
contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas
consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não
construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português
que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.
A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas
de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os
candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão
com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo
contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal,
bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de
passar pelo debate público.
Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e
analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental
deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível
confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis
implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e
características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais
qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de
aprender com seus próprios erros.
Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento
dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que
disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos
debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira:
como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de
áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas
adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências
de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao
Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?
Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período
eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas,
fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas
públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar
debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma
política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e
professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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