Como a gente se engana. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Intelectualmente, ele ficou famoso aqui e no exterior pelos primeiros livros, nos quais investigou a dependência dos países periféricos. Em “Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil”, escrito às vésperas de 1964, ele dispensou os esquemas doutrinários e fez uma análise empírica e pontiaguda do empresariado. A ruptura com o dogmatismo, inclusive o marxista, foi uma novidade, um valor em si. A inovação se desdobrava do real à teoria. A dominação econômica dos países centrais não era automática, dizia ele. Era mediada pela luta de classes, pela situação social e política concreta, propiciando intervenções políticas diversas. O quadro interno, porém, era desalentador: o operariado tinha pouco peso político e a burguesia industrial era subalterna à das metrópoles. Daí a sua conclusão, ao fechar o livro, ser indagativa: “No limite a pergunta será, então, subcapitalismo ou socialismo?”, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na Folha de S. Paulo, publicada sábado, 29/5. Continua a seguir.
A alternativa ecoava tanto o “independência ou morte” do hino nacional como o “socialismo ou barbárie” de Rosa Luxemburgo. Tinha o seu quinhão de pessimismo, mas era crítica e incisiva: seria preciso acelerar a disjunção e mudar as coisas —imaginativa e radicalmente.
No livro seguinte, “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, escrito com Enzo Faletto já depois da derrubada de Jango, o esquema ganhava abrangência geográfica e profundidade histórica. Agora ele dava conta de uma situação continental e sistêmica.
O livro, uma resposta à situação embutida nas alternativas postas na sua pergunta, enfrentava a trepidação do período: descolonização, terceiro-mundismo, golpes como o de 1964, revoluções. Por isso o livro é a sua obra magna, tendo circulado o mundo numa dezena de idiomas.
Pois no recém-lançado “Um Intelectual na Política: Memórias” —da Companhia das Letras, e com 315 páginas—, Fernando Henrique diz que todo mundo se enganou.
“Dependência e Desenvolvimento”, afirma, não via “barreiras insuperáveis ao desenvolvimento”; não dizia que o capitalismo dos arrabaldes é uma condenação “ao atraso”; “remava contra a maré”; foi incompreendido por causa “do seu título e da visão da época”.
Convém esquecer a vulgaridade do “esqueçam o que escrevi”, que ele nega ter dito.
Suas “Memórias” mostram, em vez disso, um trajeto complexo: o do amortecimento da crítica, em favor da acomodação a uma elite que faz qualquer negócio para manter o status quo —inclusive cooptar intelectuais dissidentes.
Ou seja, o livro fala tanto dele como do Brasil. Nele, a força e autenticidade de FHC são evidentes até a ditadura, quando seu engajamento passava ao largo das empulhações da política espoliadora. Sua franqueza e a coragem são cortantes.
Ele conta que, ao ir para o exílio, no avião, chorou "baixinho, não entendia por que estava mais interessado na tese e em ocupar uma cátedra do que em apoiar João Goulart ou ‘as esquerdas’”. As aspas procedem porque sua política era “de esquerda e antipopulista”.
Em 1965, seu pai morreu e ele voltou para enterrá-lo. Ouviu de um oficial: “Você tem 48 horas para não ser incomodado”. Não antevira, nem sequer imaginara, as taras fardadas do subcapitalismo. Ele era respeitado, poderia ter feito carreira em universidades de ponta. No entanto, retornou.
Criou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, recorrendo a instituições internacionais para garantir a independência de pensamento. Foi detido e correu o risco de tortura. Depois, um oficial o acusou de não ser patriota e FHC o peitou. O milico medrou.
A partir da Nova República, as “Memórias” perdem o gume. Até o estilo lasseia. Não há questões, problemas. (E há desleixo: Nelson Pereira dos Santos, morto em 2018, surge vivo um ano depois.)
O pensador afiado da política dá lugar ao político sem fio —“realista”, ele diria.
As múmias e monstros da Senegâmbia são vistos com condescendência. Até Sarney é “politicamente competente". "Entende bem o jogo do poder, é democrata e tem muita paciência.”
FHC considera a campanha das Diretas uma vitória, apesar de ela ter sido derrotada pelo Congresso, que impingiu Tancredo e, na sua falta, Sarney.
“A velha elite política brasileira funcionou”, escreve. “De certa maneira, a conclusão da transição democrática foi a última grande obra dos políticos tradicionais.”
Não foi. A última grande obra da política tradicional é Jair Bolsonaro, outra tara da estagnação subcapitalista.
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