Há pouco mais de um mês, Paulo Eduardo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), leu uma entrevista em que o ex-BBB Lucas Koka Penteado afirmava que não se “discute com racista, a não ser que ele queira se desconstruir”. Embora esteja lançando um livro intitulado Formação e desconstrução: uma visita ao Museu da Ideologia Francesa, Arantes não sabia que a palavra “desconstrução” tinha entrado no vocabulário de parte de jovens progressistas ativos nas redes sociais para descrever uma espécie de reforma moral que consiste em despir-se dos próprios preconceitos e reconhecer seus privilégios de classe, raça, orientação sexual etc. Arantes entendia desconstrução à moda francesa, conforme pregou Jacques Derrida (1930-2004), um dos filósofos “pós-modernos” que ganharam os holofotes intelectuais depois que o marxismo perdeu parte do brilho e as classes operárias quase sumiram do discurso político. Grossíssimo modo, a desconstrução é uma técnica de crítica literária que visa desmontar (desconstruir) as oposições (polaridades, binarismos etc.) sobre as quais se estruturou o pensamento ocidental. A desconstrução filosófica, na visão crítica de Arantes, não passa de “ideologia francesa”, escreve Ruan de Sousa Gabriel na Época desta semana. Continua a seguir.
Nos ensaios de Formação e desconstrução, escritos entre 1989 e 1995, Arantes, munido de seu arsenal materialista, faz um esforço para desconstruir o discurso de “ideólogos franceses” (Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Lacan, Michel Foucault) e de seus discípulos ianques. Ao sair da França e conquistar as universidades americanas, o jargão filosófico francês foi incorporado pelas minorias politicamente organizadas (mulheres, negros, LGBTs etc.) que hoje animam a “esquerda pós-moderna”, a mesma que renovou o significado do verbo “desconstruir”.
Num dos lançamentos virtuais de seu novo livro, Arantes mencionou o que aprendera lendo a entrevista de Penteado. “Na mesma noite, recebi e-mails de cineastas, antropólogos e sociólogos me explicando o significado de ‘desconstrução’ conforme usado pelo rapaz. Me mandaram até assistir a Desconstruindo Harry, do Woody Allen, e ao documentário Espero tua (re)volta, da Eliza Capai, sobre as ocupações dos secundaristas em 2015, do qual ele é um dos protagonistas”, disse Arantes, numa chamada de vídeo com ÉPOCA. “Recebi opiniões de vários matizes, dependendo da posição do interlocutor, se tinha ou não um pé atrás em relação às políticas identitárias a que atualmente se resumem a teoria crítica e o ativismo progressista.”
Segundo Arantes, o dilema da esquerda contemporânea — como empunhar as bandeiras identitárias sem alienar seus antigos eleitores da classe trabalhadora — não será resolvido num esquema “ou isto ou aquilo”. “Temos de analisar situação por situação. Peguemos o exemplo das ocupações secundaristas em São Paulo, em 2015, que foi uma luta do barulho, politicamente corajosa. A maioria era negra, filha de trabalhador e se sentia oprimida do ponto de vista do gênero. Era como se a sociedade toda desabasse em cima deles, que reagiram à altura e com esse vocabulário identitário, que lhes deu coragem para ocupar escolas e enfrentar um secretário de Segurança Pública que hoje é ministro do STF (Alexandre de Moraes). Por outro lado, o Movimento Passe Livre (coletivo que defende a gratuidade do transporte público e puxou os protestos de junho de 2013 em São Paulo) implodiu por causa dessas lutas identitárias”, explicou. “Se eu descarto inteiramente a combatividade dos movimentos, é melhor já preparar meu epitáfio político. Se eu embarcar dogmaticamente nas lutas identitárias, como um teórico francês ou americano, assino minha sentença de morte intelectual.”
Nascido em Santos, no litoral paulista, em 1942, Arantes estudou física e militou na Juventude Universitária Católica antes de ingressar no curso de filosofia da USP. É autor de livros como Ressentimento da dialética, Um departamento francês de ultramar, O fio da meada e O novo tempo do mundo. Escreveu também dois livros com a esposa, Otília Fiori Arantes, também professora de filosofia na USP. Arantes não dá mais aulas, mas ainda orienta projetos de pós-graduação. Nos últimos 13 meses, ele só saiu de casa para tomar as duas doses da vacina e almoçar com a família no Natal.
A orelha de O fio da meada afirma que “Paulo Arantes não é entrevistável”. O mais correto seria dizer que ele encara as perguntas do repórter como as de um aluno e responde como um professor paciente, entusiasmado e irônico. Numa mesma resposta, ele comenta a conjuntura política, recorre ao jargão filosófico e não dispensa o sarcasmo. É conhecido por suas análises (filosóficas e políticas) rigorosas, seu radicalismo político e por seu texto dificílimo. “É difícil falar do Paulo, porque ele é uma pessoa muito diferente. Ele é uma enciclopédia, domina a história da filosofia como poucos e nos estimulava a traçarmos nossos próprios caminhos intelectuais”, disse seu ex-aluno Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e ex-candidato à Presidência.
Arantes também é conhecido por seu pessimismo. Ainda nos 1990, quando todos apostavam que o Brasil ingressaria, enfim, no concerto das nações modernas, ele já alertava para a “desintegração nacional”. Também professor de filosofia da USP, Ruy Fausto (1935-2020) era um crítico do “niilismo neomarxista” e da excessiva ironia do colega. Num texto de 1997, Fausto disse que “falar na nação que se dissolve” não leva a nada e, no fundo, “serve ao sistema”. Em seu livro Veneno remédio, o ensaísta e músico José Miguel Wisnik identificou “certo júbilo hipercrítico” num dos ensaios mais influentes de Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, de 2001, que afirma: “Na hora histórica em que o país do futuro parece não ter mais futuro algum, somos apontados, para o mal ou para o bem, como o futuro do mundo”.
“Arantes assinala, não sem ironia, que a catástrofe social brasileira é uma espécie de ‘vanguarda do pior’ que anuncia processos de corrosão que estão em marcha nos países hegemônicos. Essa posição não deixa de soar como uma espécie de ufanismo às avessas, um ‘júbilo hipercrítico’”, explicou Wisnik. “Hoje, com a fratura brasileira agravada ou tipificada pelo bolsonarismo no poder, muito de seu radicalismo me parece simplesmente sensatez.” Tanto Arantes quanto Wisnik cresceram no litoral paulista e testemunharam a era de ouro do Santos, time dos dois. Arantes brincou que “contemplar o absoluto” nos dribles de Pelé fez dele um apocalíptico, enquanto Wisnik passou a “ver sentido em tudo”. “Uma vez, ele comparou o ritmo do meu andar ao de Didi levando a bola debaixo do braço, depois do gol da Suécia na final da Copa de 1958, acalmando o time e dizendo que vamos virar”, disse Wisnik. Os amigos psicanalistas de Arantes já o diagnosticaram como “perverso”, contou ele. “Dizem que sou catastrofista, apocalíptico, porque nunca acreditei muito no lulopetismo e não entrei em apoteose mental com os destinos recentes e não tão recentes do Brasil”, rebateu. “Se eu fosse isso que dizem, seria um depressivo, nem levantaria da cama e não faria tudo que faço, aos quase 80 anos”, afirmou.
O próprio Arantes disse não fazer parte do “circuito Elizabeth Arden do pensamento progressista”. Intervém pouco na imprensa, demora a publicar seus livros e não oferece cursos pagos à classe média intelectualizada. Por outro lado, dá inúmeras entrevistas a podcasts minúsculos e canais do YouTube tocados por jovens, participa de debates promovidos por movimentos sociais e dá aulas públicas no meio de greves e protestos. Só no ano passado, apareceu em 30 lives. “Meus colegas ‘otimistas’ podem esnobar o cara da rádio pirata da favela que me convida para falar porque acham que a história navega a nosso favor, que o marxismo é uma ciência e um bom governo pode colocar as coisas nos trilhos”, afirmou. “Por honestidade intelectual, esse peixe eu não posso vender. Vou enganar a moçada da ocupação? Meus colegas vão vender esse tipo de esperança enlatada em 2022?” Um amigo de Arantes chegou a dizer que ele fizera uma “opção pelo submundo marcuseano”. Segundo o filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979), o potencial revolucionário não jazia mais nas classes operárias, mas naqueles que ocupavam as margens extremas da sociedade. “Quando reencontrei esse amigo, depois de junho de 2013, perguntei para ele: ‘E aí, viu o submundo marcuseano indo às ruas?’”
Nos últimos anos, Arantes vem mais falando do que escrevendo. Ele se define como um “professor de filosofia que escreve ensaios eventualmente reunidos em livro” e que prefere análises de conjuntura bem-feitas à teoria. “O John Dewey (filósofo americano, 1859-1952) dizia que teoria não importa. Eu não ligo se o cara é racionalista ou empirista, corintiano ou flamenguista. Quero é saber se ele joga bem. (Ludwig) Wittgenstein (filósofo austríaco, 1889-1951) disse que, se todos os problemas filosóficos forem resolvidos, nada terá mudado”, explicou. “Mais do que teoria, me interessam análises, como a do etnógrafo Gabriel Feltran, que mostra como está se formando um ‘sistema jagunço’. Como tenho o marxismo na cabeça, consigo associar isso com a categoria da totalidade, mas não vou ler nem escrever um livro de 600 páginas sobre a teoria do valor em Marx e adjacências. Fora de cogitação.”
Desde o lançamento de Formação e desconstrução, Arantes tem voltado à teoria para descobrir como o jargão dos ideólogos franceses baixou das nuvens filosóficas parisienses para a realidade. “Quero entender as origens e metamorfoses do jargão desconstrutivista e entender como ele é sintoma de um mundo no qual o futuro já começou a terminar. Como é que a desconstrução que começou num embate estratosférico com a metafísica chegou ao Big brother, a coletivos políticos da maior importância e ao programa do Bozo e do Olavo de Carvalho?” Em 2019, num jantar nos Estados Unidos, com seu guru ideológico e lideranças conservadoras americanas, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: “Nós temos é que desconstruir muita coisa”.
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