O que causa estranheza na versão brasileira desta pandemia é que não está tendo, entre nós, os efeitos pedagógicos e civilizadores que tiveram em outros países os grandes desastres: guerras, terremotos, tsunamis e, mesmo, epidemias, como a peste negra. Esses eventos extraordinários desmontam a estrutura da sociedade, anulam a eficácia de suas regras sociais, invalidam valores que formam o substrato da consciência social, dos relacionamentos e da própria atitude perante a vida. Eles fragilizam as referências da estabilidade e da continuidade social. Causam rupturas sociais que são desafios de criatividade e de remodelação das sociedades. Em todas essas situações, cada sociedade expõe seus próprios mecanismos, quase sempre inconscientes, de despertamento de uma sociabilidade de emergência. Com muita rapidez a sociedade se reinventa, às vezes em questão de minutos ou de poucas horas, escreve José de Souza Martins no Valor, em texto publicado dia 21/5 no jornal. Continua a seguir.
Essa característica das relações sociais foi detectada nos experimentos etnometodológicos concebidos e praticados pelo cientista social Harold Garfinkel. Em seus experimentos, pessoas colocadas em face de situações sociais imaginárias de supressão de referências de conduta e de dilemas reduzidos às alternativas “sim” ou “não” logo percebem o roteiro implícito na situação adversa e vão inventando padrões alternativos de comportamento que suprem a falta das referências da conduta costumeira.
Num outro plano, a sociedade pós-catástrofe também carrega e preserva, daí em diante, as orientações e descobertas da situação de emergência. É normal que as sociedades mudem em decorrência dos desafios representados por acontecimentos desconstrutivos de valores e normas.
A Segunda Guerra Mundial deixou na Europa e no Japão um legado de civilidade, no alargamento da tolerância social, na renúncia, ao menos parcial, aos exageros da ostentação, na valorização do menos, do pouco e do existente, na cooperação social, no respeito aos bens públicos e ao bem comum.
Naquele evento trágico, as pessoas se ressocializaram para o que veio a ser a nova sociedade do pós-guerra. Em alguns casos, a mudança foi facilitada pela consciência do vazio. Como ocorreu na Alemanha, também pela deliberada ação de desnazificação promovida pelos americanos e pelos aliados ocidentais. Os vencidos o são porque fragilizados no direito de ser o que sempre foram. Ficam à mercê de quem os vence, têm que aprender a viver com as sobras culturais e materiais da derrota.
As epidemias e os desastres naturais podem ter efeitos semelhantes aos da derrota numa guerra no vazio que criam, na peculiar pobreza de valores e de normas sociais válidos.
O Brasil da pandemia e da catástrofe eleitoral de 2018 é, a seu modo, um país derrotado pelas peculiaridades dessas adversidades, porque estão corroendo as instituições e o amor próprio dos brasileiros. Com a diferença de que, neste caso, o inimigo do país e vencedor é completamente incompetente para impor um modelo social e político de sua reordenação.
Aqui no Brasil, não temos tido reações populares de reconhecimento dos efeitos socialmente destrutivos da pandemia e das ações infantis e irresponsáveis do governo, que dela se aproveita para consumar um golpe de estado silencioso e lento.
A sociedade brasileira mostra-se uma sociedade politicamente desvalida, sem organizações políticas capazes de mobilizá-la em relação a todos os variados âmbitos em que ela vai sendo fragilizada. E não me refiro apenas à pandemia, mas também à miséria social. Nem Bolsonaro nem seus ministros tem demonstrado, por mínima que seja, a compreensão apropriada e consistente do que está ocorrendo aqui.
O governo já se revelou inconsciente e incapaz de conceber e viabilizar um grande plano de reforma econômica, política e social, de que o país carece para renascer das cinzas. Notoriamente, carece de legitimidade para o imenso desafio do momento histórico. Nisso, o Congresso Nacional não está melhor do que o Executivo.
Portanto, mesmo que a pandemia possa ser debelada nos próximos meses, não há qualquer indício de que Estado e sociedade tenham condições de agir no sentido de superar os danos sociais agravados pela pandemia.
De qualquer modo, os cientistas sociais tampouco têm se revelado sensíveis aos desafios de deciframento do que foi que de fato aconteceu em 2018. Um governo com cotidianas demonstrações de conduta anômala em face de uma sociedade em estado de anomia pede que nele se aplique a técnica dos estudos a distância, na linha antropológica preconizada por Mead e Metraux, em antologia de 1953.
É possível e necessário decifrar cientificamente os segredos e fatores da anormalidade, tanto do presidente, quanto do governo paralelo.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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