Pular para o conteúdo principal

Como é a política por trás do agronegócio

O apoio ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, os boiadeiros do governo Jair Bolsonaro, vai muito além do trio do agro-lúmpen: madeireiros, grileiros e garimpeiros. Fosse assim, representantes da “Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura”, principal entidade da resistência, criada depois do Acordo de Paris (2015) para buscar convergências entre o agronegócio e o ambientalismo, teria voz no Instituto Pensar Agropecuária (IPA), mais articulada entidade político-empresarial do setor com 46 associações afiliadas. Caio Pompeia chegou a esta conclusão ao longo dos oito anos de pesquisa no doutorado (Unicamp-Harvard) e pós-doutorado (USP) que lhe renderam “Formação Política do Agronegócio” (Elefante, 2021), com lançamento previsto para o dia 12. O livro faz um mapeamento das entidades do agronegócio desde o surgimento do termo, importado dos Estados Unidos na década de 1960, e não tem dúvida em eleger o IPA como a mais representativa delas, escreve Maria Cristina Fernandes no Valor, em artigo publicado dia 7/5. Continua a seguir.


O instituto acompanha a tramitação dos interesses do setor nos Três Poderes e, a partir da contratação de estudos e pareceres, articula instrumentos para a obtenção de resultados favoráveis. Vai muito além de um tradicional “think tank”. O quartel-general é uma casa, ou “mansão” no jargão brasiliense, no Lago Sul, onde empresários e parlamentares se encontram semanal, ou diariamente, a depender da temperatura do momento, para discutir a pauta do setor e, com frequência, contam com a presença de ministros, juízes, governadores e lobistas de toda ordem.

A diretoria do IPA hoje está nas mãos de cinco entidades - CNA (Confederação Nacional da Agropecuária), Orplana (Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil), Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), Única (União da Indústria da Cana-de-Açúcar) e OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras). Desde a fatídica reunião de 22 de abril de 2020, quando Salles revelou sua intenção de “passar a boiada” do desmonte legal da proteção ambiental, a entidade não tem negado apoio ao ministro. Acaba de tomar posse na Aprosoja, que ocupa a diretoria do IPA, Antonio Galvan, um dos mais ferrenhos adversários da moratória da soja, compromisso adotado entre grandes produtores, ambientalistas e o segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva que proíbe a compra de soja proveniente de áreas recém-desmatadas na Amazônia.

O IPA está longe de refletir as posições mais arrojadas da Coalizão em relação ao desmatamento, à regularização fundiária e aos compromissos climáticos do país, apesar de as duas organizações terem participantes em comum. Um exemplo é a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), uma das entidades mais atuantes na busca de convergências entre os empresários do setor e a pauta ambiental. A Coalizão, na percepção de Pompeia, abriu mão de disputar poder no instituto que monta a agenda do setor e influencia a poderosa Frente Parlamentar da Agricultura. As eleições no IPA, diz, são um acordo de cavalheiros.

A opção da Coalizão por contornar o IPA reflete a resiliência do instituto na defesa de interesses mais tradicionais do setor. No prefácio do livro, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha situa setembro de 2020, quando a Coalizão apresentou ao Executivo uma proposta com seis medidas para acabar com o desmatamento, como o momento mais próximo do rompimento. Na verdade, a Aprosoja rompeu com a Abag, que tem liderança na Coalizão. Esta, apesar de, poucos dias depois, ter recebido a adesão dos três maiores bancos do país (Itaú, Bradesco e Santander), não tem a mesma capacidade de articulação nos Poderes demonstrada pelo IPA.

Esta força nasceu de uma forma de organização que, se inicialmente inspirada no agronegócio americano, o extrapola, proporcionalmente, no poder sobre o Estado e entidades patronais. A organização do agronegócio ganhou corpo para fazer contraponto ao interesse industrial que se avaliava predominante nos anos 1950. Hoje tem a Federação das Indústrias de São Paulo sob sua órbita.

O agronegócio fez surgir - e manter - um órgão de excelência da pesquisa nacional como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) sob os auspícios do Estado, feito nunca alcançado pela indústria. Criada em 1973, a Embrapa teve seus propósitos contestados ao longo de dois breves anos. Pompeia lembra que em 2003, na estreia do governo Lula, a tentativa de mobilizar a Embrapa para a modernização da agricultura familiar foi vista como “aparelhamento ideológico e partidário”. Em 2005, a reação da bancada ruralista, de entidades da agricultura patronal e de multinacionais de insumos derrubou a diretoria que adotara as mudanças.

A inflexão no governo petista se estenderia a temas como o trabalho escravo. Em 2008, depois que um relatório da Anistia Internacional denunciara as “condições exploratórias de trabalho na limpeza da terra, produção de carvão e no crescente setor de cana-de-açúcar”, o autor resgata uma declaração do ex-presidente Lula: “Vira e mexe, estamos vendo eles [os europeus] falarem do trabalho escravo no Brasil, sem lembrar que no desenvolvimento deles, à base do carvão, o trabalho era muito mais penoso que o trabalho da cana-de-açúcar”.

Em livro recente, “O Quinto Movimento - Propostas para uma construção inacabada” (Editora Já, 2021), o ex-presidente da Câmara dos Deputados e três vezes ministro (Articulação Política, Defesa e Esportes), Aldo Rebelo, que, na condição de relator do Código Florestal, ainda no PCdoB, foi um dos responsáveis por aproximar o governo petista do agronegócio, assim define a reação da agricultura americana e europeia à competitividade do setor no Brasil: “Recorrem ao duplo subsídio, aquele que recebem do Tesouro de seus países, e o outro destinado indiretamente pelo mesmo Tesouro a organizações não governamentais (ONGs) pagas para difamar a agricultura e a pecuária do Brasil”. Rebelo, que Pompeia define como um negociador pragmático que surpreendeu o agronegócio, avança sobre as áreas de florestas e reflorestamentos necessárias à meta do carbono zero: “Onde encontrar tais áreas? O Brasil cabe como uma luva nesse mapa e daí se explica toda a campanha pelo desmatamento zero (estou falando de desmatamento legal, permitido por lei), e pela desantropização da Amazônia e quem sabe do Cerrado.”

A semente plantada por Rebelo no governo do PT acabaria por florescer com a posse de Michel Temer. Pompeia resgata dois registros públicos de apoio do setor ao impeachment, da Frente Parlamentar da Agropecuária (“A sociedade brasileira em geral e o segmento produtivo em particular não suportam mais conviver com esse palpável momento penoso”) e da Associação Brasileira do Agronegócio, a Abag (“O Brasil venceu uma etapa importante de sua trajetória e dá um grande passo na direção de solucionar a mais séria crise política, econômica e social de sua história”).

O novo presidente retribuiria o apoio. Logo que assumiu, em maio de 2016, fez uma visita ao IPA e extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário, criado no governo Fernando Henrique Cardoso. Precisou renovar sua gratidão quando sobreveio a delação de Joesley Batista, da JBS, ao Ministério Público Federal, em que Temer apontava o ex-deputado federal Rodrigo Rocha Loures, filmado com uma mala contendo R$ 500 mil, como seu intermediário. Temer sancionou lei de regularização fundiária que facilitava apropriação privada de terras públicas na Amazônia Legal, reduziu dívidas previdenciárias da agroindústria e modificou o conceito de trabalho análogo à escravidão. Pompeia registra que as operações do Ministério do Trabalho que flagram o trabalho escravo reduziram-se de 159 em 2015 para 88 em 2017.

Não foi apenas Temer que escapou. O grupo dos Batista mostrou a resiliência do agronegócio ao escapar ileso dos escândalos protagonizados pelos controladores, ao contrário da Odebrecht ou da Petrobras. Fez acordo de leniência de R$ 11,4 bilhões e faturou R$ 270 bilhões em 2020.

O agronegócio foi tão contemplado que um elo de sua distribuição, os caminhoneiros, acharam por bem buscar um lugar sob o mesmo abrigo. Apesar de integrarem a cadeia econômica do setor, diz Pompeia, os caminhoneiros não são representados politicamente em suas entidades. Por isso, recorreram àa paralisações, como se viu a partir do governo Temer, que deram esteio à candidatura Jair Bolsonaro. Juntaram-se ao movimento que já reunia produtores rurais insatisfeitos com a reeleição de Dilma Rousseff e o apoio que lhe prestara a senadora Kátia Abreu (PP-TO), ex-ministra da Agricultura e liderança da Confederação Nacional da Agropecuária.

Um dos aglutinadores dessa insatisfação foi o então presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia, que saiu a visitar as 26 federações integrantes da CNA a partir de 2015, mesmo ano em que o então deputado federal Jair Bolsonaro passaria a sistematizar suas visitas a instalações militares e policiais e sua presença em formatura de cadetes e sargentos em todo o país. Nabhan aglutinou médios e até grandes produtores prejudicados pelo gigantismo das campeões do setor. Enfrentou resistência deles para se tornar ministro da Agricultura, mas firmou-se na Secretaria de Assuntos Fundiários da Pasta.

Nabhan é um soldado prestigiado por Bolsonaro, mas a pauta do presidente visa à toda a tropa. A Expozebu escolheu o Dia do Trabalho para abrir, com a presença do presidente, que lá prometeu rever a apropriação de propriedades autuadas por trabalho escravo, prevista na Constituição, fazer andar o novo projeto de regularização fundiária e combater o “terrorismo” no campo. Só não falou dos 125,6 milhões de brasileiros que, a despeito de viverem numa potência agropecuária, estão hoje sob insegurança alimentar.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...