Na manhã da terça-feira 27, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) revisava o discurso que faria durante a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) aberta para investigar a atuação do governo federal no combate à pandemia da Covid-19. Ao reler trechos do texto, que começara a ser redigido duas semanas antes, o senador alagoano ligou para um assessor. “Olha, dá um jeito de incluir no discurso que, em um único dia da pandemia, a Covid chegou a matar mais brasileiros do que em toda a Segunda Guerra Mundial.” E disse ainda: “Faz, também, alguma referência a Pinochet”, concluiu. Naquele momento, oficialmente, Renan Calheiros estava impedido pela Justiça Federal do Distrito Federal de assumir a relatoria do colegiado. Uma liminar concedida na véspera pelo juiz Charles Renaud Frazão de Moraes, da Segunda Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, atendia ao pedido da deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) e afastava o parlamentar da CPI, sob a alegação de que o senador não poderia estar presente por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), escreve Paulo Cappelli na edição desta semana da revista Época, continua abaixo.
Durante os 12 minutos que separam o trajeto de sua casa em Brasília do Congresso Nacional, Renan Calheiros não estava preocupado com a determinação judicial, que acabou derrubada à tarde. Na noite anterior, logo após a canetada do juiz, a maioria dos integrantes da comissão decidiu, em reunião, ignorar a deliberação do Tribunal de Justiça, sob a alegação de ferir o princípio de separação e independência dos Poderes. Assim que o carro parou no Anexo II do Congresso, uma multidão de repórteres e fotógrafos se amontoou em volta do senador. A cena relembrou os anos nos quais o parlamentar presidiu o Legislativo brasileiro.
Renan Calheiros é a síntese da política brasileira. Por três mandatos, comandou o Senado Federal colecionando aliados e — muitos — inimigos. Durante sua vida política, foi alvo de 27 inquéritos. Destes, 19 foram arquivados e oito seguem em andamento. Foi citado em delações e, hoje, responde a uma ação penal no Supremo Tribunal Federal por corrupção passiva e lavagem de dinheiro por supostas irregularidades na Transpetro. Até o momento, nenhuma condenação. Em 2007, renunciou ao comando do Congresso após a revelação de que a empreiteira Mendes Júnior pagava a pensão da mãe de um filho seu. Em 2016, deu uma festa, repleta de políticos, regada a vinhos e uísques, para comemorar a derrota que o Senado impôs ao Supremo ao mantê-lo na presidência da Casa, ignorando a decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello pelo seu afastamento. Um dia depois, o plenário da Corte concordou em manter Renan no comando da Casa.
Um pouco antes das 10 horas da terça-feira, depois de passar pelo escrutínio dos repórteres na entrada e nos corredores do Congresso, o senador chegou ao plenário 3 do Anexo II da ala Senador Alexandre Costa, onde seria instalada a CPI da Covid. Uma assessora vinha logo atrás já com a última versão do discurso que faria assim que seu nome fosse confirmado na relatoria. Por causa dos protocolos contra a Covid-19, para evitar aglomeração, a profissional acabou barrada pela Polícia Legislativa e não pôde entrar na sala. Renan, então, girou o corpo para trás, fitou o segurança e disse: “Ela entra”. Assim foi feito.
Escolhido relator, Calheiros disparou críticas ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, atacou o negacionismo durante a pandemia e afirmou que culpados existem e devem ser punidos “emblematicamente”. Apesar de se declarar imparcial, o senador alagoano fez um discurso cheio de recados ao Palácio do Planalto. “Quem fez e faz o certo não pode ser equiparado a quem errou. O erro não é atenuante, é a própria tradução da morte. O país tem o direito de saber quem contribuiu para os milhares de mortes e eles devem ser punidos imediata e emblematicamente”, afirmou o senador durante a reunião da comissão.
E foi além: “No pior dia da Covid, em apenas quatro horas o número de brasileiros mortos foi igual a todos que tombaram nos campos de batalha da Segunda Guerra. O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas? Provavelmente um morticínio”, afirmou o senador, em referência ao fato de Pazuello ser general do Exército e ter sido escalado para comandar a pasta da Saúde.
A narrativa do relator da CPI incomoda o Planalto. Antes de Renan ser oficializado como relator, o presidente Jair Bolsonaro tentou fazer um aceno. Na semana passada, pessoalmente, telefonou para o governador de Alagoas, Renan Filho, e pediu que ele avisasse ao pai que buscaria contatá-lo. A aproximação não se concretizou e a tentativa de Carla Zambelli, uma das principais aliadas do governo, para tentar excluir Renan na Justiça acabou acirrando os ânimos.
“Os verdugos são inservíveis no estado democrático de direito. Eles negaram apoio a esta CPI. Negaram, por todo os meios, a chance que ela fosse instaurada. Agora tentam negar que ela funcione com independência. O negacionismo em relação à pandemia ainda terá de ser investigado e provado. Mas o negacionismo em relação à CPI da Covid, já não resta a menor dúvida”, afirmou o senador no discurso.
Renan Calheiros foi aliado dos ocupantes do Palácio do Planalto de Fernando Collor a Lula, de Fernando Henrique Cardoso a Dilma Rousseff. Gostava de compor. A amigos, costuma dizer que “oposição, sapato branco e dente de ouro só é bom nos outros”. Mas, no momento, Renan parece estar tomando cada vez mais gosto pela contraposição ao governo Bolsonaro. Rotineiramente, ele usa uma expressão aprendida com seu pai, Major Olavo, para falar sobre seus embates. “Bom adversário é aquele de quem você tem muita chance de ganhar; mau adversário é aquele de quem você tem muita chance de perder.”
E, a interlocutores, Renan tem classificado o presidente como um “bom adversário”.
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