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Renan Calheiros ensaia passo desastroso ao tentar quantificar mortes evitáveis por Covid

Na pandemia, todos os governos do mundo cometeram erros. O governo Bolsonaro, porém, cometeu sucessivos crimes contra a saúde pública. A missão da CPI é documentá-los, acusando o presidente perante os tribunais da opinião pública e da história. Mas Renan Calheiros ensaia um passo desastroso: quantificar as mortes evitáveis derivadas de ações ou omissões do governo federal. Enfeitiçado pelas redes sociais, o relator ameaça converter as conclusões numa pantomima política."Vamos ouvir a academia, a ciência e receber os estudos das mortes evitáveis", declarou, como quem dirige-se a uma consulta com um oráculo. Qual é o endereço da Ciência? Estudos baseados em modelos estatísticos nunca faltaram na pandemia. No caso dos modelos de longo prazo, as divergências sobre óbitos sempre situaram-se nos umbrais do infinito. Todos se recordam de Osmar Terra, que sem estudo algum profetizou poucos milhares de mortes. Muitos se esqueceram dos especialistas que, apoiados no Imperial College, previram 1 milhão de óbitos no Brasil até agosto do ano passado —e isso, bem entendido, com a manutenção das restrições sanitárias adotadas no início de tudo. O que dirão as vozes oraculares sobre as mortes evitáveis?, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, em texto publicado sábado, 29/5. Continua abaixo.


Nesta Folha (20 de maio), um professor universitário escreveu que Israel criou o Hamas. Sobram acadêmicos dispostos a jurar que George Bush ordenou a derrubada das Torres Gêmeas. A cegueira ideológica não se circunscreve à área de humanidades. Modelos dependem dos pressupostos selecionados pelo modelador: Calheiros terá em mãos os mais desvairados estudos, desde os capazes de garantir que o governo federal tem responsabilidade por 90% dos óbitos até os que celebrarão a cloroquina como elixir da vida eterna.

A melhor régua da pandemia é o cálculo do excesso de mortes —ou seja, do total de óbitos que supera a taxa de óbitos verificada em anos recentes. A revista The Economist utilizou uma ferramenta estatística para estimar esse valor, até 8 de maio de 2021 (econ.st/3yzjzoa). Sugiro que, nos seus passeios pela ciência, Calheiros consulte o estudo.

No mapa resultante, o Brasil situa-se em faixa de alto impacto (150 a 250 por cem mil), junto com EUA, Argentina, Cuba, Reino Unido, Itália e Espanha. Equador, Bolívia, Bulgária e Polônia, por exemplo, situam-se em faixa superior (250 a 350 por cem mil), enquanto México, Peru e Rússia aparecem na mais elevada (350 por cem mil ou mais). Como provar que, sem Bolsonaro, ficaríamos junto com a Alemanha (25 a 50) ou o Chile (100 a 150)?

Um utópico lockdown permanente talvez reduzisse as mortes a algo perto de zero. A Suécia, que nunca fechou quase nada mas levou o vírus a sério, inscreve-se em faixa de baixo impacto relativo (50 a 100). Se tivesse optado por lockdowns, terminaria como a Finlândia (0 a 25) ou como a Bélgica (150 a 250)?

Bolsonaro sabotou, pelo (mau) exemplo, o uso de máscaras, as restrições sanitárias e a aquisição de vacinas. Sob Pazuello, o Ministério da Saúde abandonou os pacientes de Manaus, divulgou o receituário curandeirístico do "tratamento precoce", recusou-se a fazer propaganda das medidas de prevenção e da vacinação. São crimes de Estado pagos com vidas —mas em número incalculável.

Atirando-se à aventura de calculá-lo, Calheiros deixa-se guiar pelo clamor do "genocídio", uma acusação estúpida repetida nas redes sociais por incontáveis "especialistas" e comentaristas com agenda política. O fruto óbvio seria um relatório especulativo —ou, dito de outro modo, uma pizza com sabor radical. Ele teria o aplauso de uma minoria justamente indignada, mas ricochetearia na indiferença da parcela crucial dos eleitores desencantados de Bolsonaro.

A CPI pode qualificar Bolsonaro como "genocida", jogando para a arquibancada. Ou pode escrever o epitáfio de seu (des)governo. Só não pode fazer ambos.



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