Pular para o conteúdo principal

Obra-prima, 'O Poderoso Chefão' ultrapassa o gênero filmes de gângster

No primeiro ato de “O Poderoso Chefão”, Don Vito (Marlon Brando), o patriarca dos Corleone, repreende o filho Sonny (James Caan), que divergiu dele numa conversa com mafiosos de outro bando. “Nunca diga o que está pensando fora da família,” ensina-lhe o pai. No terceiro e último ato, o conselho é virado do avesso. O protagonista agora é Michael (Al Pacino), que de herói de guerra, universitário e moço de boa índole transmutou-se em chefe de quadrilha.A conversa é só entre os Corleone. Não há gente de fora, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na Folha de S. Paulo, publicada sábado, 15/1. Vale a leitura, continua a seguir.


Vincent (Andy Garcia), sobrinho e herdeiro de Michael, discorda com veemência do tio. O padrinho o chama na chincha: “Nunca deixe ninguém saber o que está pensando”. A família, ninho cálido e inexpugnável da lealdade, some da frase. O maioral do clã deve desconfiar até dos parentes.

Rever os três “O Poderoso Chefão” de uma vez, agora que o último deles foi relançado com uma edição definitiva, permite perceber esse e outros detalhes. Eles apontam no sentido da unidade, põem de pé um épico de quase nove horas.

É ocioso especular se a unidade foi intencional, se estava na cabeça de Francis Ford Coppola desde o primeiro filme. Ou se foi produto da pressão da Paramount, que o espremeu até que ele —primeiro inebriado pelo sucesso, depois falido e endividado— dirigisse outros dois capítulos.

O decisivo é a inteireza dos temas, do visual e da atuação do elenco. Os três filmes inexistem em separado. São atos harmônicos de uma obra sobre família, imigração, catolicismo e o continuum entre crime e capital. “Acredito na América” é sua primeira frase.

A inteireza e a harmonia levam “O Poderoso Chefão” ao terceiro atributo da beleza, segundo o Tomás de Aquino de Stephen Dedalus: o esplendor. Não é para menos. O filme foi dirigido pelo autor de outra obra prima, “Apocalypse Now”. Contou com quatro atores de primeira: Brando, Pacino, De Niro e o inventor do método de atuar americano, Lee Strasberg.

Além de tema, a família é motor do filme. A música é do pai do diretor, Carmine Coppola. O grande papel feminino foi interpretado por sua irmã, Talia Shire, que de jovem ingênua vira uma Lady Macbeth que incita a vendeta do irmão e serve cannoli envenenados.

O tempo se encarregou de comprovar que sua filha Sofia, tão atacada na estreia como atriz, tem um desempenho comovente como Mary Corleone. Até seu sobrinho Nicolas Cage está bem. Por fim, sua mãe, Italia, se finge de cadáver numa ponta.

Os entretons de marrom granulado de Gordon Willis são sobrecarregados nas cenas em Nova York e no Vaticano; e radiosos em Havana, em Nevada e na Sicília. Os núcleos sombrios do crime, da religião e das finanças corrompem a claridade dos lugares abertos e periféricos.


Há uma alusão a “A Execução de Maximiliano”, de Manet, no fuzilamento de Sonny: o rosto dos atiradores não aparece, o crime é anônimo e molda um sistema. A inspiração de Manet foi o Goya de “Os Fuzilamentos de Três de Maio” —e o pintor espanhol permeia o filme todo.

“O Poderoso Chefão”, com isso, ultrapassa o gênero filmes de gângster. Está numa categoria diversa de “Scarface”, de Hawks, de “Os Bons Companheiros”, de Scorsese, e de “Era uma Vez na América”, de Leone. É o sumo do cinema americano, posto a serviço de uma estética que circula entre o particular e o geral, o abstrato e o concreto.

O catolicismo é ponto de passagem dessa dialética. “O Poderoso Chefão” encena —ou se refere a— os sete sacramentos, batismo, crisma, confissão, eucaristia, ordenação, matrimônio e extrema-unção. Há até morte e ressurreição, mas em arte, na récita da “Cavalleria Rusticana”, em Palermo.

Cada sequência que exibe um sacramento é entremeada por flashes de gângsteres que assassinam a sangue frio. Ou então serve de cenário para que os Corleone arquitetem novas mortandades. A espiritualidade religiosa é vista como uma ritualização da obediência à força, que vige no mundo real.

Michael é o herói. Quer tirar a família do submundo de violência, corrupção e crime, para que viva legal e legitimamente. Quer arrancá-la do inferno da acumulação primitiva e levá-la ao paraíso do capital estável, feito de riqueza reluzente e filantropia. O filme se passa no purgatório.

Ao se associar ao banco do Vaticano para conquistar uma das maiores empresas imobiliárias do mundo, Michael constata que a Igreja é tão brutal e corrompida quanto a máfia. Mata o irmão, a mulher o larga, a filha morre nos seus braços. Perde a família, os negócios, a alma. Não há superação neste mundo.

Mario Sergio Conti é Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...