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Espíritos fortes, tiozinhos, mocorongos e abobados se embolaram em Washington

O que houve na quarta-feira em Washington foi um monstruoso fiasco. Ele serviu para ilustrar como a nação mais poderosa do planeta vai mal das pernas. E o Brasil, com sua fidelidade canina aos Estados Unidos, segue-lhe os passos como um vira-lata de estimação. Saíram esmerdeados do episódio os parlamentares abobados debaixo de mesas. Os polícias coniventes ou fujões. A imprensa dada a ministrar lições magistrais e que pouco apura. O sistema político que permitiu a Trump fazer o que lhe desse na veneta, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna semanal na Folha, publicada sábado, 9/1. Continua a seguir.

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Pouco antes de o Capitólio capitular, dava gosto ver a empáfia das sumidades de plantão. Todas previam uma sessão excruciante, cheia de “pela ordem” e “data vênia”. Mas ao fim da via crúcis, para glória maior da democracia triunfante, Biden seria canonizado ao som de “God Bless America”.

Deu no que deu: uma tentativa de golpe online. E golpe com tiozinhos de fardas camufladas, debandada de meganhas, um mar de bandeiras confederadas, o simulacro infantilóide da tomada da Bastilha, o uníssono boquiaberto de queixos que caíam: a perplexidade foi geral.

A surpresa é o que define os golpes políticos. Quem o diz é Gabriel Naudé, o intelectual francês pré-iluminista que, em 1639, criou a expressão “golpe de Estado”. Ele a pôs no título das suas “Considerations Politiques sur les Coups d’État”, ou considerações políticas sobre golpes de Estado, um manual maquiavélico.

Ali ele diz que “nos golpes de Estado o raio explode antes de o trovão rosnar nas nuvens, as matinas são rezadas antes que os sinos toquem, a execução precede a sentença, a pancada bate em quem pensou dá-la, morre quem se julgava seguro, sofre quem nunca sonhou com a dor”.

Naudé encerra a arenga dizendo que nos golpes “tudo é tramado à noite, na névoa e na escuridão”. Nosotros, vítimas brasileñas de la Escuela Cucaracha de Pronunciamentos Militares, sabemos disso: golpes são urdidos em segredo e pegam os incautos de supetão – e aí Inês é morta.

Vide 1964. Houve espanto quando o general Olympio Mourão Filho – que, com propriedade, se disse “uma vaca fardada” – desceu com suas tropas de Minas para o Rio. Havia nuvens grossas no céu, mas a tempestade de raios assustou e acuou. Só Brizola tentou resistir.

Aplicar o quesito decisivo de Naudé – a surpresa – ao que houve na quarta é um abuso. Era às claras que Trump maquinava o golpe. Pregava-o no twitter, e seus acólitos organizavam-no nas redes sociais. Aliciava generais e cogitava baixar a lei marcial.

Horas antes do pega-pra-capar, reuniu a choldra na frente da Casa Branca e ordenou que marchasse sobre Capitólio. A fauna ilustrada da elite batia papo numa boa, prelibando a sagração de Biden.

E a malta, ora, marchou. Educada, a polícia convidou os arruaceiros a entrar. Os 74 milhões que votaram em Trump, o líder de espírito forte, aguardavam o desfecho.

“Espírito forte” é outra expressão de Naudé. Ele a aplica aos príncipes que não se deixam levar por suposições e superstições. Que enfrentam a realidade com audácia. Que põem para correr os tíbios, os hesitantes, os crédulos, os que se perdem no labirinto das próprias ilusões.

Como Naudé escreveu as “Considerações” no século 17, não se deve aplicar suas categorias mecanicamente. Mas não venceu o prazo de validade de considerar o golpe como uma emboscada, engendrada por espíritos fortes para produzir um fato consumado (“fait accompli”).

A caracterização vale para que Naudé diga que a Noite de São Bartolomeu foi um golpe; e para que Perry Anderson sustente que a criação da União Europeia também o foi. Em 1572, em Paris, três mil protestantes morreram. Em 1954, em Roma, ninguém. Em Washington, cinco pessoas.

O golpe não prosperou. Houve escaramuças em várias cidades, mas a sedição não se generalizou pelo país. Tampouco batalhões do exército e da polícia aderiram. O sistema político se rearticulou ao longo da quarta-feira e Biden foi entronizado na madrugada.

Trump foi derrotado? Depende. Se não for destituído, e sua turba de mocorongos não pegar uns bons anos de cana, terá vencido. Há outras perguntas pertinentes. Por que centristas, liberais, progressistas, antifas, feministas e defensores dos direitos civis não fizeram nada antes?

Ou: por que políticos, professores, funcionários, estudantes e trabalhadores ficaram parados? A resposta está diante de nós. Bolsonaro diz dia sim e outro também que dará um golpe. Para tanto, aparelha o Estado de fio a pavio. Afundará o Brasil outros dois anos. E ninguém faz nada de prático para detê-lo.


Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



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