A recente pesquisa nacional de opinião, do Datafolha, sobre o desempenho do presidente da República e seu governo, feita entre 8 e 10 de dezembro, constatou que 37% dos brasileiros julga-o ótimo e bom. Ele manteve a popularidade da pesquisa de 29 e 30 de agosto. Portanto, para mais de 70 milhões de brasileiros, o provavelmente mais complicado governante de nossa história republicana atravessa incólume um dos piores períodos da história social e política do Brasil. A causa dessa anomalia pode estar no fato de que o notório despreparo do governante é contrabalançado pela gravidade da situação adversa: os 37% entendem que é melhor ter o muito menos do que o nada. Não há nenhum contraponto político ao atual governante. Esse número não é regulado pelo melhor, mas pelo pior da situação anormal, que é ele mesmo. Bolsonaro não é definitivo. Ele é o inevitável. Ideologicamente capturado pela pandemia, tornou-se expressão política da doença. Ele é a política doente, escreve Souza Martins em sua coluna no Valor Econômico, publicada na sexta, 8/1. Continua a seguir.
Os 37% não são sábios. Essa porcentagem o que revela é insegurança e medo. Um outro dado confirma a incerteza das convicções na massa dos politicamente desvalidos. Tudo indica que em decorrência da campanha que o próprio presidente da República tem feito para minimizar a pandemia e desrespeitar as medidas preventivas contra sua disseminação, a proporção de brasileiros que decidiu recusar a vacinação pulou de 9% para 22%, 46 milhões de pessoas. Tendo ele declarado que não tomará a vacina, pode estar induzindo milhões de pessoas a ter medo de recebê-la, contra a segurança sanitária de toda a população.
Nesse campo de incertezas há uma variedade de hipóteses que podem ser levantadas para se ter uma compreensão do que significa a anomalia de tão larga opinião favorável a quem é desprovido de carisma e de liderança autêntica.
A situação brasileira atual tem características cientificamente experimentais. O que deveria acontecer não acontece e o que deixa de acontecer deveria mobilizar a opinião pública no sentido oposto ao do expressado pelos 37%, o de um clamor pela mudança. Por que as coisas vão na direção oposta à do bom senso?
Como também ocorreu nos governos petistas, somos partidarizados, mas não temos discernimento propriamente político. Isto é, não avaliamos as alternativas históricas na hora de votar e de opinar. O que nos leva, como em 2018, a não avaliar objetivamente os riscos políticos que há em eleger como presidente alguém que está aquém do necessário à tomada correta de decisões conforme o apropriado a cada momento e a cada desafio. Uma orientação política que deve ser entendida como expressão de um senso comum que Antonio Gramsci (1891-1937) definiu como bom senso. Gramsci é o pensador preso e vitimado pelo fascismo italiano, aqui satanizado por membros de um governo que tem medo das ideias.
Neste momento, o conformismo político brasileiro não é expressão de uma opção conservadora. O bolsonarismo não é conservador, é reacionário. Não pretende resistir a inovações políticas e sociais e paralisar a história. Pretende retroceder a realidades tão obsoletas como a do aquartelamento da política e o obscurantismo da ditadura militar e a uma política econômica antissocial e anticapitalista.
O conformismo dos 37% decorre de nosso regime republicano defeituoso, que não foi feito para dar ao povo e ao eleitor a liberdade de decidir e de escolher quem deve governá-lo. O republicanismo brasileiro é o da incerteza, o de deixar o povo sem clareza quanto ao perfil e às orientações dos candidatos ao mando político. O conformismo do brasileiro é o conformismo da espera, do gato que espera o rato se mover para eliminá-lo. Os 37% dessa pesquisa são contraditoriamente desse tipo, o da tocaia. Nisso, opinião não explica nem o ser nem sua intenção.
O conhecimento conservador não é de direita nem é de esquerda. Karl Marx (1818-1883) a ele se filiava. Só nele seu rico método científico tem sentido, nas concepções de dialética e de totalidade, isto é, da contradição que exprime o possível, não o imóvel. O pensamento de Augusto Comte (1798-1857), no polo oposto, também dele procede, só há progresso na ordem. O primado da ordem não é primado conformista. Bolsonaro e os bolsonaristas não se encaixam em nenhuma dessas orientações. Despistados, eles não se encaixam em nada.
A persistência dessa anômala preferência por Bolsonaro é indício de falta de alternativas. Mas é evidência, também, de que entre ninguém e alguma coisa a população prefere alguma coisa. É uma população que detesta a desordem no governo. Ou seja, detesta o governo, mas se agarra a Bolsonaro, o maior símbolo da desordem governativa. O povo tem sua própria geopolítica do desmonte. E é paciente e lento.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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