Uma revolução social está ocorrendo no Brasil. Destaco a rápida e irresistível disseminação do chamado sistema agrícola agroflorestal. Trata-se de uma revolução porque quebra paradigmas de conhecimento e de práticas agrícolas e desafia os valores obsoletos, os modos de ser, de trabalhar, de produzir, com desdobramentos no modo de conceber o ser humano e a vida. Revolução porque redefine a função do dinheiro na vida das pessoas, inverte prioridades e funções em seu uso, suprime a necessidade de insumos químicos no cultivo. A agricultura convencional, especialmente a de grande escala, apesar de suas irracionalidades e das degradações sociais e ambientais que promove, baseia-se no primado do capital, escreve José de Souza Martins no Valor, em artigo publicado dia 15/1, vale a leitura. Continua a seguir.
O sistema agroflorestal baseia-se no primado do trabalho. Seus pressupostos e orientações são científicos e contraculturais. Restauram e utilizam o conhecimento que foi desvalorizado e descartado pela agricultura desvinculada do amor à terra.
O sistema agroflorestal propõe a redescoberta da linguagem de conversação entre o homem e a terra. Nele, o homem não é dono. É auxiliar da natureza. É significativo que os agricultores que optam por esse sistema reformulem sua sociabilidade de vida e de trabalho ao adotar formas comunitárias e condominiais no uso da terra e de partilha de seus frutos.
O objetivo primordial não é o de produzi-los, mas o modo social de fazê-lo. Trata-se de um modo de produção que descoisifica o homem na sua relação com as coisas que produz.
Esse regime econômico é revolucionário, entre muitas coisas, não só porque alimenta os famintos, mas porque devolve o amor à relação entre o homem e a natureza. Devolve a poesia ao trabalho e a essa relação. Algo que é característico da agricultura de família e é característico do trabalho artesanal e da manufatura, a produção em que o trabalho ainda não foi separado do saber em que se baseia o modo de fazer.
A revolução agroflorestal ganhou sentido com a vinda para o Brasil, nos anos 1980, do geneticista suíço Ernst Götsch. Ele trabalhava na criação de plantas e sementes geneticamente modificadas, resistentes a pragas e altamente produtivas. Uma tecnologia que se difundira, duas décadas antes, como recurso-chave da chamada Revolução Verde.
No entanto, a difusão das sementes modificadas inviabilizou a agricultura tradicional e levou a miséria a muitas famílias, como aconteceu nas áreas de soja do Brasil nos anos 1970. Os lavradores abandonaram a produção direta de seus meios de vida, concentraram terra e trabalho na produção de soja e, quando os preços despencaram com o excesso da oferta, viram-se na miséria.
Ernst, como é conhecido, interrogou-se sobre o sentido de criar geneticamente sementes que gerariam plantas resistentes a pragas e altamente produtivas, que incrementariam a monocultura, mas desequilibrariam a relação do agricultor com a natureza.
Acabou no Sul da Bahia. Comprou uma fazenda em terras degradadas a tal ponto que os 12 olhos d’água que possuía estavam secos. Consorciando de verduras a bananeiras, eucaliptos e cacaueiros, dentre várias possibilidades, cobrindo a terra com adubação verde preservadora da umidade do solo e restauradora da sua fertilidade, reinventou a agricultura.
Nesse sistema, em três semanas a horticultura produz renda, enquanto as plantas grandes e de tamanho médio crescem. Cada qual, no devido tempo, produzirá frutos e renda. O volume de produção triplica por hectare e a floresta volta a existir. A água voltou a jorrar nos olhos d’água em sua fazenda.
Ernst ressalta que, na sua agricultura sintrópica, há a mesma harmonia da música de Bach, no reencontro do homem com a unidade e a beleza do planeta e da natureza. Até os insetos e as bactérias são autores dessa obra. Nessa revolução, a agricultura e o trabalho tornam-se também obra e instrumento de arte.
A agricultura familiar adaptou-se bem ao sistema agroflorestal, produtora direta dos meios de vida da família e produtora de excedentes econômicos para comércio. Cria emprego, evita a dispersão da família e lhe devolve a sociabilidade comunitária. Permite produzir e ter muito mais com muito menos. Transforma a terra num bem não só econômico, mas num bem existencial e moral.
O modo capitalista de produção é superado pelo modo de produção da vida que vem antes dele. O direito de propriedade se diversifica. Essa revolução está promovendo um reencontro de gerações e atraindo especialmente jovens, com grande participação de mulheres.
Está nascendo uma sociedade nova e até uma cidade nova, com florestas alimentícias. Em São Paulo, em Belo Horizonte, em Brasília, em parques e áreas públicas, moradores estão disseminando a beleza das agroflorestas.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).
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