Fatos históricos costumam guardar simbolismos para a posteridade. As roupas são os signos mais evidentes porque posicionam um episódio no tempo. Os anos Trump que se encerram agora foram inflados dessas referências, e a tomada do Capitólio, na quarta-feira, por fanáticos apoiadores do presidente americano, expôs o look de um país tripartido. Quatro anos de ódio, mentiras e revisionismo se aglutinaram numa tarde. O remendo de viking usado pelo membro do grupo de teorias conspiratórias QAnon, Jake Angeli, autoproclamado Q Xamã, uma possível referência à sua suposta conexão com espíritos, é só a parte caricata da cartilha do novo extremismo ocidental. No grupo que invadiu o Congresso e aparece em imagens partindo para cima dos seguranças, sua aparência se esforça para expressar a ideia de força bruta por trás da roupa composta por chapéu peludo, chifres e calça cor de areia, escreve Pedro Diniz na Folha de São Paulo, em texto publicado dia 8/1. Continua a seguir.
Na versão folclórica, branca, loira e barbuda como os companheiros do extremista tresloucado, os vikings invadiam territórios como conquistadores de terras que acreditavam ter o direito de dominar e tinham um senso de honra baseado na fúria de seus machados —eles, aliás, aparecem em escudos que circulam nas redes como emblema. Mas não é o escárnio da mitologia nórdica que identifica a horda.
O camuflado militar, os capacetes de guerra, o look preto com símbolos supremacistas, os coletes cáqui e a roupa vinculada ao operariado americano marcharam juntos pelos corredores do congresso entornando o caldeirão iconográfico do ódio.
Os “proud boys”, ou garotos orgulhosos, grupo dos mais ativos na escalada fascista e que Donald Trump já se recusou a condenar, apareceram reformulados em trajes pretos e gorros laranjas.
É que suas reconhecíveis polos pretas com listras amarelas da marca Fred Perry —que, aliás, foi obrigada a parar de produzir o modelo depois da apropriação da roupa pelo grupo— já viraram marca registrada e, com a prisão de seu líder, dois dias antes do evento, ela foi engavetada para essa espécie de “dia da corda”.
A expressão vem do livro de um ex-líder nazista que, em seus devaneios, criou um conto em que jornalistas e supostos traidores dos brancos eram enforcados em praça pública. Nas imagens, é possível ver várias cordas suspensas próximas do Capitólio.
Mais livremente e sem o impedimento da polícia estava um admirador do Kekistan, grupelho autodenominado inimigo do politicamente correto, visto enrolado na bandeira verde, branca e preta, com um desenho no centro que faz referência ao nazismo, e vestia o capacete que identifica a milícia.
Uma imensa maioria vestia, porém, os básicos urbanos de moletom e as calças cargo que remetem à estética bélica. Se diferenciam, porém, do mesmo look urbano composto de cores escuras e blusa encapuzada, visto nas manifestações pró-democracia em Hong Kong e nas antirracistas do Black Lives Matter.
A cisão estética que ocorreu na esteira da ideológica nos Estados Unidos chegou à política. Talvez a imagem mais contundente do racha tenha sido dada pelas dezenas de congressistas que, trajadas de branco no dia do discurso do presidente em fevereiro de 2019, resgataram a imagem das sufragistas britânicas do início do século 20.
Elas voltaram à cena. Nesta quinta-feira, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, usou um costume roxo na coletiva em que pediu a Mike Pence a invocação da 25a emenda, que tem como efeito a destituição do presidente por incapacidade de governar. A cor, na cartilha das sufragistas, representava lealdade e firmeza.
O dourado completava a paleta da época, simbolizando esperança. O tom foi usado neste mesmo dia por outra democrata, a prefeita de Washington, Muriel Bowser, que ao explicar a extensão do estado de emergência na capital americana, decidiu pela cor sufragista em sua blusa.
Além de relembrar o colorismo proposto por Emmeline Pankhurst à época da luta pelo voto feminino, o que essas dezenas de mulheres no poder acabaram por fazer é ilustrar um contraste ao militarismo oliva de Melania e Ivanka Trump expresso em roupas que, indiretamente (ou propositadamente), foram pólvora para apoiadores radicais.
Não foi coincidência, então, que no discurso de vitória, a vice-presidente eleita Kamala Harris apareceu com um terninho cintilante em “off-white” assinado pela marca da estilista e imigrante venezuelana Carolina Herrera —até o gentílico da roupa fala em democracia.
No pescoço, um “pussy bow”, o laço em formato de vagina que virou símbolo de empoderamento quando passou, na segunda metade do século 20, a integrar o figurino de escritório das mulheres recém-chegadas ao mercado de trabalho.
Mesmo esse acessório foi estratégia de Harris para atualizar o suposto atentado imagético de Melania, que, ainda na campanha de 2016, após áudios vazados nos quais o marido profere expressões misóginas, resolveu aparecer no segundo debate presidencial com uma blusa rosa adornada com o laço.
Será com terror fantasiado de patriotismo e um estica e puxa midiático na corda iconográfica do tempo que os Estados Unidos irão sair na foto dos estertores prorrogados da última década. A julgar por suas últimas imagens e uma posse que pode ser marcada por outras semelhantes às desta semana, o desenho do futuro não parece menos perturbador.
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