“Não me diga que ele foi banido por violar as regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação oficial de anulação da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da internet. Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na Folha, publicada aos sábados (texto de 15/01). Continua a seguir.
O ato extremo do Twitter, bem como a suspensão temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia defensiva.
Nos EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina seu mandato à sombra da invasão do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o novo governo democrata e sua maioria parlamentar.
Um jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento virtual siga seu curso até Bolsonaro. No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes odientas da direita nacionalista; nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.
O nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna, calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos, igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.
O privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem. As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em desgraça.
Jack Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos, deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.
É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...
Desconfio, porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.
Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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