Larry Rohter, na revista Época desta semana, escreve um belo artigo, vale a leitura, continua abaixo.
Por fim, Donald Trump vai embora: o que estava em dúvida até a supressão da violenta tentativa de golpe no último dia 6 agora está assegurado. Mas os danos feitos durante os quatro anos de seu mandato desastroso permanecem e vão constituir o principal desafio para o novo presidente americano, Joe Biden, quando ele tomar posse ao meio-dia do dia 20. As bases da democracia americana foram profundamente abaladas, e não será fácil reconstruí-las.
Claro que Biden também precisará enfrentar outras crises já anunciadas. Mas elas são conjunturais, e não estruturais. Como parte da herança maldita que ele recebe de Trump, por exemplo, terá de eliminar a Covid-19, que já matou mais de 385 mil americanos, deixou outros 23,5 milhões doentes, roubou o emprego de quase 40 milhões e fez a economia despencar. Mas isso deve ser relativamente fácil de contornar. Basta mostrar competência, organização e disciplina — qualidades que Donald Trump nunca teve — que a pandemia retrocede e a economia volta a crescer. Fala-se de uma recuperação até o fim de 2021.
O trabalho de consertar os grandes rasgos feitos no tecido de nossa democracia, por outro lado, será muito mais árduo e prolongado, com um desfecho impossível de prever. Em apenas quatro anos, Trump desrespeitou — e fez ruir — todo um corpo de leis, normas, práticas e crenças desenvolvidas ao longo de 244 anos e incentivou seus devotos a seguir seu exemplo. “Não sabemos ainda o que estamos presenciando”, disse o comentarista Van Jones na CNN quando a turba incitada por Trump ainda estava dentro do Capitólio, com os membros do Congresso deslocados às pressas para um esconderijo subterrâneo. “É algo feio em nosso país agonizando? Ou o nascimento de uma desordem ainda pior?”, perguntou ele, referindo-se à violência como ferramenta rotineira da política.
Talvez seja difícil para o estrangeiro entender o choque sofrido pelo americano comum ao ver o Capitólio, prédio que ocupa um espaço muito especial no imaginário nacional, ser sitiado e depois tomado. Desde criança, somos ensinados a pensar no Capitólio como lugar sagrado, “o templo da democracia”. Só uma vez antes foi ocupado por forças hostis: o Exército britânico, durante a guerra de 1812. O momento em que os novos invasores baixaram a bandeira americana e içaram outra com o nome de Trump foi, então, como um soco no estômago. Assistindo horrorizado e indignado pela TV, pensei: “Que país é este?”.
Com o impeachment votado nesta semana, contando com o apoio até de dez republicanos, Trump sofre a ignomínia de ser o único presidente americano a ser impugnado duas vezes. Se a condenação for confirmada pelo Senado, ele não poderá nunca mais se candidatar para nenhum cargo público pelo resto da vida. Mesmo sem sanções formais, terá de lidar com uma posição enfraquecida pela raiva e pelo nojo da grande maioria do povo, além de enfrentar encargos criminais e a possível bancarrota do império de negócios que ele criou à base de enganações e ilusões. E está banido indefinidamente pelo YouTube e pelo Snapchat e permanentemente de Twitter e Facebook, suas plataformas preferidas para espalhar as mentiras e os vitupérios que o catapultaram à Casa Branca. Parece liquidado.
E os seguidores de Trump? Depende de quem estamos falando. Neste momento, existe um sentimento generalizado de repúdio contra os 12 senadores e 138 deputados republicanos que apoiaram a tentativa liderada por Trump de invalidar com intimidação e processos jurídicos frívolos a vitória eleitoral contundente de Biden, alegando uma fraude que nunca houve. Basta olhar para o estado da Georgia, baluarte escravista e secessionista durante nossa Guerra Civil e fortaleza republicana há 30 anos. O sentimento de asco contra Trump e seus facilitadores é tamanho que, numa eleição especial um dia antes da insurreição, o eleitorado escolheu dois candidatos democratas — pela primeira vez um negro e um judeu — para representar o estado no Senado. Com isso, Biden terá uma maioria (estreita) em ambas as casas do Congresso, fato que deve facilitar seu programa legislativo.
Mas um sistema político bipartidário como o nosso depende de um consenso sobre valores e procedimentos e, quando um desses partidos para de aceitar as regras do jogo, o sistema todo encalha. Como instituição, o Partido Republicano enlouqueceu e hoje pensa do seguinte jeito: “As únicas eleições válidas são as que nós ganhamos, e qualquer vitória dos democratas é por definição fraudulenta e, portanto, ilegítima”. Trump sai do cenário, mas o trumpismo não: ele continua na pessoa do vice Mike Pence, do secretário de Estado Mike Pompeo e dos senadores calculistas Josh Hawley, Rafael “Ted” Cruz e Tom Cotton, todos eles com aspirações de herdar a base que apoia Trump e ser o candidato republicano para presidente em 2024.
Nem todos os próceres republicanos são assim: Arnold Schwarzenegger, ex-governador da Califórnia e astro de cinema, postou um vídeo dilacerando Trump como “o pior presidente de todos os tempos” e comparando os invasores do Capitólio a nazistas. Mas a grande massa do eleitorado republicano — sobretudo os evangélicos e os brancos pobres de zonas rurais ou com pouca instrução — continua venerando o ainda presidente. Segundo uma pesquisa de opinião feita no dia 7, mais republicanos aprovam o ataque ao Capitólio do que não aprovam.
Num livro célebre chamado The paranoid style in American politics (O estilo paranoico na política americana), publicado em 1964, o historiador Richard Hofstadter demonstrou que o pensamento irracional, conspiratório e demagógico sempre esteve presente no país, muitas vezes ligado ao ódio dirigido a elites e minorias. Mas Trump, aproveitando as redes sociais, fortaleceu e espalhou essa tendência como nunca em nossa história. Um exemplo: em novembro foram eleitas para a Câmara duas integrantes do QAnon, movimento que acredita que Trump é o escolhido de Deus, combatendo uma cabala de democratas pedófilos e canibais que quer que Satanás governe o mundo. Não é uma piada; é uma realidade que Biden terá de enfrentar.
Como mostram os vídeos passados incessantemente na televisão americana, tudo isso foi visível no assalto ao Capitólio. Havia gente portando bandeiras com o lema “Lei e Ordem” que usou o mastro para espancar policiais até a inconsciência. Outros ajoelharam para orar a Cristo antes de invadir e depredar. Houve neofascistas, neonazistas, racistas, antissemitas, anticatólicos, anti-imigrantes, gente vestida em camisetas do QAnon e milícias evangélicas, todos misturados, fortemente armados e gritando: “USA, USA”. Especialmente preocupante foi a presença de militares reformados e policiais e bombeiros fora de serviço: um dos mortos no quebra-quebra (cinco mortes ocorreram em decorrência da invasão e uma por suicídio, um dia após o episódio no Capitólio) foi uma oficial da Força Aérea e ex-simpatizante de Obama radicalizada pela retórica nacionalista de Trump.
O grande dilema para a sociedade americana neste momento é como lidar com esse pessoal, se seria melhor seguir a política da cenoura ou do cassetete. Os esforços de convencimento feitos durante o mandato de Trump não valeram nada: os sites de verificação de fatos documentaram mais de 25 mil mentiras contadas pelo presidente, mas para muitos dos fiéis cada palavra de Trump é pura verdade, começando com as falsas alegações sobre a eleição supostamente “roubada”. Essa crença é reforçada por uma complicada teia de sites, redes de televisão, revistas e programas de rádio de extrema-direita, que por lei não podem ser proibidos.
Mas tudo indica que aplicar todo o rigor da lei pode não render os resultados desejados e, pior, ajudar a incentivar e acelerar um processo de radicalização que especialistas americanos comparam ao fanatismo dos ingressantes no Estado Islâmico. Também cria mártires e alimenta no movimento trumpista a sensação de uma perseguição injusta. Parece que eles saboreiam as confrontações violentas: a da semana passada foi celebrada como um grande triunfo, e os organizadores prometem outras investidas — contra os capitólios estaduais e no dia da posse de Biden —, ameaça que motivou a convocação de mais de 20 mil tropas e policiais. Para mostrar como vai ser difícil, senão impossível, trazer de volta à realidade essa massa trumpista, basta observar sua reação ao ataque que seus integrantes mesmos implementaram. Apesar de todas as provas visuais e dos posts orgulhosos dos vândalos, muitos deles sustentam que os atacantes eram todos simpatizantes dos movimentos Vidas Negras Importam ou Antifa, um grupo antifascista. Alguns deputados chegaram até a declarar isso no plenário do Congresso. E as malucas teorias da conspiração continuam proliferando: a mais recente, que ouvi no dia 11, é que a vitória de Biden, que será apenas nosso segundo presidente católico, resultou de um complô entre os democratas e o Vaticano para mexer com as urnas e a contagem de votos.
Vale a pena notar de passagem, porém, que Trump e os republicanos não são os únicos minando normas estabelecidas pela Constituição americana. Um dia depois do colapso do autogolpe, a presidente democrata da Câmara, Nancy Pelosi, entrou em contato direto com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas solicitando que ele não cumpra nenhuma ordem de Trump de bombardear adversários como Irã ou Coreia do Norte ou, pior ainda, lançar mísseis com ogivas nucleares.
É fácil entender por que ela driblou os procedimentos normais e acionou diretamente as Forças Armadas: o Pentágono está em mãos de trumpistas fiéis, que têm feito tudo para bloquear uma transição de poder tranquila, e ninguém — com a possível exceção de um presidente humilhado, enfurecido e instável — quer uma conflagração mundial. Mas a atitude de Pelosi estabelece um precedente preocupante e corrói os princípios de supremacia dos civis sobre os militares e o não envolvimento dos militares na política doméstica. É mais um desafio para Biden.
Biden, de 78 anos, se orgulha de ser centrista e conciliador. Mas vai governar um país sumamente polarizado e desconfiado, permeado de rancores, ódios, divisões e desejos de vingança. Vai comandar um aparelho administrativo que foi deliberadamente enfraquecido e maltratado. É uma tarefa quase impossível: somos 50 estados, mas não estamos unidos. Biden está zarpando em águas turbulentas, desconhecidas e infestadas de tubarões, sem poder se dar ao luxo de errar. Navegar é impreciso, mas nunca como agora.
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