No tempo em que a arte escrita tinha importância, discutia-se forma e conteúdo. Ficou assente que uma não existe sem a outra. Já a avaliação da relação entre eles continua problemática porque não existem conteúdos e formas fixas: a história os altera. A forma permanece ao longo do tempo, apesar do seu conteúdo ter origem datada. “Guerra e Paz” remete a almas e destinos do passado e do presente. Dizia uma coisa em 1865 e diz outras tantas a leitores de hoje, à luz da história que se passou e se passa agora. Na forma, “Guerra e Paz” é um romance, o gênero literário capital no século 19, o herdeiro da épica grega na era burguesa. Hoje, o romance não é tudo isso. Foi trocado por outras formas e gêneros, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na Folha de São Paulo, publicada sábado, 30/1 . Continua a seguir.
A literatura perdeu espaço para o cinema no século 20. E, na migração interna entre os gêneros, o lugar do romance foi ocupado, lenta e contraditoriamente, pelo filme de ficção.
Esse processo não se plasmou numa configuração estável, como antigamente. Ele se acelerou. Tanto que no presente, no tempo de uma vida, são os filmes que soçobram. Estão sendo abalados, ante nossos olhos atônitos, pelas séries de televisão.
É uma vertigem que embaralha formas e gêneros. O filme retém algo do romance porque mostra o destino de personagens que, suscetíveis à história, acumulam experiências enquanto dura a sua trama.
Já as séries estão mais próximas de outro gênero, a novela. Nelas não há acumulação: os personagens não mudam. Tampouco há um clímax ou uma dissolução final. Há um miniclímax no desenlace de cada capítulo —que propagandeia o seguinte.
Nas séries, a sequência não gera um todo que demanda interpretação e crítica, como nos filmes. A relação entre os personagens tende a ser dialética no filme-romance, e mecânico-causal nas séries-novelas.
Postas em ordem cronológica, três séries talvez possam mostrar algo da estrada que o gênero percorreu desde o ponto de partida, os filmes de cinema —que, por sua vez, tiveram origem no romance.
“Twin Peaks”, que estreou em 1990, foi dirigida por um artista vindo do cinema e marcado pela literatura surrealista, David Lynch. A série foi uma combinação —e uma luta— entre cinema e TV, romance e novela, entre arte e comércio.
A concentração da trama no tempo e no espaço, no vilarejo fictício de Twin Peaks, não lhe reduziu o escopo. Ela ia para frente e para trás; duplicava os personagens em diferentes personalidades; recorria a figuras sobrenaturais. A pergunta que lhe serviu de lema propagandístico —quem matou Laura Palmer?—revelou-se sem importância.
A série virou filme, “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, do próprio Lynch, que lhe ficou bem aquém. Ele tinha suspense, humor, mistério, mas eram arremedos. Como a série era melhor que o filme, a televisão venceu o cinema ao manter muito da sua forma e pouco do conteúdo: ambos são a-históricos.
“Downton Abbey”, de 2010, procede de um filme específico. A série foi criada por Julian Fellowes, roteirista de “Assassinato em Gosford Park”, de Robert Altman. A ideia de ambas é a mesma: mostrar uma família de aristocratas, e seus empregados, na primeira metade do século 20.
Na série, ainda que a oposição entre as classes apareça, bem como a opressão da Irlanda, os trabalhadores que servem de bucha de canhão na guerra de 1914-18 e a ascensão do fascismo, os fatos vergam sob o peso das imagens. São imagens televisivas, e não cinematográficas.
Mais, ainda. O conteúdo mesmo de “Downton Abbey” é reduzido a imagens: vestidos, castelos, sofás, a decoração, os ternos, a caça à raposa, as joias. Tudo aquilo que é imanente à riqueza merece destaque e prestígio.
A série soa tola não por minimizar a luta entre as classes. Poderia ser mais verdadeira se mergulhasse de vez na moda, nos jardins, na arquitetura, em coletes e corpetes —se assumisse que é só um “divertissement”. Por não ter conteúdo propriamente dito, o filme baseado em “Downton Abbey” é vazio.
“Dix pour Cent”, de 2015, e que está em cartaz no Netflix, tem por tema o cinema: o título refere-se aos 10% que os agentes ganham de atrizes e atores para serem escalados em filmes. Sua criadora, Fanny Herrero, nunca teve nada a ver com cinema, é criatura da televisão.
Em cada episódio, uma celebridade do cinema aparece em destaque: Juliette Binoche, Isabelle Huppert, Isabelle Adjani, Sigourney Weaver etc. Na prática, são reduzidas a coadjuvantes. A série vence definitivamente o cinema na forma. No conteúdo, sai a arte e entra o dinheiro: os 10% do cachê.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
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