Minha filha ama cor-de-rosa, e eu não sei mais o que fazer a respeito dessa tremenda falta de noção de sua parte. Comprei uma camiseta azul estampada com skatistas irados, e ela falou: “É feia demais”. Na loja, foi direto na saia plissada pink com bolotas salmão: “Olha que linda, mamãe”. Eu então sentei no chão e expliquei: “Sim, muito bonita, mas todas as cores são legais, e você pode ter bermudas e shorts se quiser, não se sinta obrigada a ter saia porque alguma amiga sua ou mãe de amiga ou tia ou avó ou alguém no desenho ou no filme falou que é o que você deve usar. Você pode usar o que quiser”. Rita tem três anos. Não entendeu nada do meu discurso. Me achou tão chata e louca quanto eu me acho. Agarrou a saia (que de fato era belíssima, e eu só conseguia pensar em como EU MESMA queria pra mim aquela porra de saia divina) e mostrou para o pai: “Quero essa!”. E pronto, escreve Tati Bernardi em sua coluna na Folha, publicada dia 30/1. Continua a seguir.
Comprei uma ponte de madeira grande pra ela brincar com carrinhos: “Olha, filha, o carrinho sobe aqui, pega velocidade e lá embaixo sai batendo em tudo”. Onde eu quero chegar com isso, pelo amor de Deus? Ensinar pra Ritinha que é legal acelerar veículos e sair atropelando uma fileira de bonecas Baby Alive de todas as etnias? Socorro! Eu comprei, tal qual a consumista compulsiva que sou, tal qual a filha suprema do capitalismo que sou, o papinho mais superficial da obsessão progressista da bolha em que me encontro e na qual preciso ser aceita todos os dias. Eu paguei à vista minha visão “escola construtivista” e ainda ostentei nas redes sociais. Eu não preciso passar menstruação na cara para ensinar à minha filha que sangrar todo mês é normal, limpo e saudável. E também um saco.
Minha filha quer tudo da temática doméstica. Fogão, ferro, geladeira, pia, aspirador, vassoura. Eu vetei por um tempo, a enchi de bolas e monstros, agora liberei geral. Na caixa vem sempre a foto de uma MENINA brincando, mas que culpa Ritinha tem se a embalagem está errada? Que metam ali um menino também. Quem olha pra esses brinquedos e sente toda a biblioteca feminista cair em cima da cabeça sou eu. Rita está feliz, brincando com utensílios que ela vê a gente usando aqui em casa —tanto eu, quanto o Pedro… mas MUITO mais a Maria e a Lucia, que trabalham aqui. Pra ela é simples, e eu só estou complicando porque sou a típica chata humanista elite, a clássica progressista queridona com empregadas. Eu me tornei a mulher que, na juventude, eu apontava e dizia: “Um dia ainda vou ter uma coluna no jornal pra rir dessa galera”. Pobres dos filhos das pessoas pouco analisadas e que não leem. Pobres dos filhos das pessoas muito analisadas e que leem demais.
Rita tem todo o direito de pirar e dar gritinhos ao ver uma loja inteira cagada de pink. E eu tenho todo o direito de pirar e dar gritinhos junto, porque, mano, de fato dá vontade de morar lá dentro e de ter todas aquelas coisas. Sim, meu nome é Tatiane, estou tentando entrar no mestrado da USP, estou lendo Angela Davis e… comprei uma pochete pink.
Eu quero gritar “FORA, BOLSONARO” e emendar num “EU AMO PINK”. Rita está me devolvendo gostos que sempre foram meus, mas eu aprendi a rejeitar. Não posso ser perua. Não posso ser fútil. Não posso ser mulherzinha. PAREM TUDO, é só uma loja inteira cagada na cor rosa, e se minha filha e eu estamos felizes ali dentro QUE FIQUEMOS EM PAZ.
Rita ama maquiagem e esmalte, e hoje estamos, enquanto termino esta coluna, tão maquiadas, mas tão maquiadas, que periga o universo nos cancelar. Dane-se!
Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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