Pular para o conteúdo principal

Lote na lua

Francamente, alguém acredita que o rumo do governo e o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro serão definidos pela presença de Baleia Rossi ou Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados? Os dados de realidade nem sempre são agradáveis e raramente se enquadram ao universo onde se batalha pela opinião do público. Portanto, há na plateia muita gente disposta a acreditar que com Rossi eleito o Brasil estará a salvo de Bolsonaro e cairá irremediavelmente sob o domínio do (des)governante de turno se o vitorioso for Lira, diz Dora Kramer em sua coluna na Veja, publicada na edição desta semana da revista. Continua abaixo.


Para frustração dos entusiastas dessas hipóteses, não ocorrerá uma coisa nem outra. Primeiro porque Bolsonaro não tem paciência nem competência para dominar a Câmara e, segundo, porque no campo das ideias os dois candidatos são muito parecidos.

As fabulações sobre submissão total de um e oposição ferrenha de outro servem para manter a chama acesa do debate acerca do destino de Bolsonaro, animam as torcidas, mas não resistem à luz da vida como ela é.

E na Câmara a vida real é assim: deputado gosta de fidelidade à palavra empenhada, da sensação de acolhimento político e/ou pessoal, da ocupação de espaços legislativos, da atenção materializada no acesso ao gabinete do presidente da Casa e de ser ouvido por ele como se fosse o único.

O jogo ali é parlamentar, cujas regras são muito diferentes das que regem a dinâmica eleitoral. Ou é crível que o apoio nominal dos partidos de esquerda a Rossi signifique chance de aliança desse campo com o centro daqui a dois anos? A direita contrária a Bolsonaro também não deixará de se unir ao centro independentemente da posição assumida na eleição da Câmara. A próxima presidencial será definida pela economia, pelo desempenho dos governantes na vacinação e, claro, pela arquitetura política dos pretendentes.

“É fantasiosa a ideia de que a eleição na Câmara definirá o rumo de Bolsonaro”

Às vezes a ligação de um tema ao outro até atrapalha. O caso de Rodrigo Maia ilustra isso: ainda que tivesse condições legais, ele declinaria num misto de gesto de desprendimento e consciência de que teria dificuldades para se reeleger. Por duas razões: ausência daqueles quesitos enunciados acima como os preferidos dos deputados e existência de projeto eleitoral para 2022.

Tais fatores conspiram contra o candidato de Maia, por muitos visto como títere dele, enquanto Lira, além de prometer compartilhar o comando com o coletivo, tem, no máximo, planos de se reeleger em 2023, o que o obriga a cumprir os compromissos agora assumidos com seus pares. Não digo que assim será, mas é assim que muitos deputados analisam o quadro para definir seus votos.

Será uma eleição disputadíssima porque as posições estão em aberto, a despeito de a contabilidade partidária dar larga vantagem a Baleia Rossi, hoje tido como dono de quase 280 votos contra cerca de 200 para Arthur Lira. Fala-se muito em traições, mas a denominação não corresponde aos fatos.

Os partidos decidiram formalmente os apoios, mas em todas as bancadas há divisões significativas de lado a lado. Os dissidentes no máximo atuam discretamente, embora não façam questão de se esconder, muito menos de firmar promessas explícitas. Os dirigentes das legendas tampouco se ocupam a sério em produzir ameaças de retaliações.

Isso tem a ver com a consciência geral de que há mais semelhanças a unir que diferenças a separar os dois oponentes quando se fazem projeções sobre a presidência de um e de outro. Ambos são conciliadores, não têm o perfil de um ferrabrás tipo Eduardo Cunha, assumiram posições similares em votações de temas caros ao campo ideológico ao qual pertencem e nada farão que contrarie o espírito geral da Casa.

Por exemplo, a tal pauta de costumes continuará sem andar a despeito da vontade de Bolsonaro, porque determinados retrocessos não passam na sociedade. O impeach¬ment só depende formalmente do presidente da Câmara. Na prática é agenda submetida a condições políticas e sociais, como demonstrado pela gaveta de Rodrigo Maia onde dormem 58 pedidos de impedimento.

Existem diferenças, no entanto. A folha corrida de Lira com denúncias de peculato, lavagem de dinheiro, sonegação de impostos e improbidade administrativa é uma delas. Outra é que pega mal votar em candidato de Bolsonaro. Em tese, favorecem Baleia Rossi. Mas, se valem muito para o público externo, não chegam a mobilizar sensibilidades internas numa eleição em que o voto secreto é a alma do negócio.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...